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Texto: Valter Bracht, Mestre em Ciência do Movimento Humano e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

É bastante curioso, para dizer o mínimo, como após um determinado resultado de uma partida de futebol, milhões de analistas buscam argumentos e explicações para o sucesso ou o insucesso de determinada equipe, ou seja, buscam explicações para o resultado. Explicar o resultado significa identificar as causas que o determinaram. Na modernidade, as causas, diferentemente do pensamento mítico-religioso, são buscadas não em forças externas ao mundo concreto, ou seja, o mundo tem um funcionamento intrinsecamente lógico-racional. Assim, também o sucesso ou o insucesso num campeonato pode ser explicado buscando as causas dos mesmos. Poucos são os analistas que não partem (diga-se de passagem, na maioria das vezes de forma implícita) desses pressupostos. Um exemplo é Tostão, que tem falado em suas crônicas sobre o inexplicável e o imponderável presente no futebol, constituindo-se em exceção.

É também muito curioso ou mesmo paradoxal que sempre estejamos tentando “eliminar” a imprevisibilidade do (nosso) resultado em uma atividade cuja atração ou tensão prazerosa provém exatamente da sua imprevisibilidade. Como sabemos, essa é uma das características centrais do fenômeno do jogo. O que observamos, é um comportamento quase esquizofrênico ou ambíguo: me divirto com a tensão da imprevisibilidade do resultado, mas envido todos os esforços (racionais) para garantir um determinado resultado.

Olhando “de fora” o comportamento do torcedor de futebol é algo grotesco porque fica oscilando entre o apelo a todos os santos e divindades e ao mesmo tempo buscando causas/culpados. Aliás, ouve atentamente e julga os comentários dos “especialistas” e confere às causas identificadas por esses (e por suas próprias análises) credibilidade sem jamais, no entanto, atribuir à “forças ocultas” o resultado (apesar de, em caso de sucesso, agradecer aos “céus”). Embora possa parecer grotesco, esse comportamento também pode ser lido como uma espécie de resistência (não conscientemente assumida) à total racionalização do mundo vivido (mas esse é outro tema!).

Apesar de ambíguo, o nosso comportamento em relação à prática do futebol, ou de forma mais geral, em relação aos esportes competitivos (particularmente os de alto-rendimento) vem sofrendo cada vez mais a influência do afã racionalista moderno… mas… o acaso e o “sobrenatural” resistem!

Ao refletir sobre isso lembrei de um texto (talvez pouco conhecido ou citado) do filósofo brasileiro (falecido em 2002) Gerd Bornheim, intitulado “Racionalidade e acaso”.[1] Encontrei nele uma interessante análise do percurso da racionalidade no mundo moderno no seu afã de domar o acaso. Passo a resenhar suas reflexões.

Para o autor, já o pensamento filosófico inaugurado na Grécia antiga pretendia vencer a sujeição ao acaso, procurando estabelecer um comércio racional do homem com o seu meio-ambiente. Vale dizer, estabelecer uma relação de dominação para com a natureza. Esse passo, do acaso para a racionalidade, foi decisivo para a história do homem. O homem transforma o próprio planeta em objeto. A crítica que se fez a essa perspectiva não conseguiu prejudicar a crença na razão e seu sucesso fez surgir a ideia de que o todo da sociedade deveria ser reestruturado em conformidade com preceitos estritamente racionais. Para este pensamento a realidade é sistemática, ou seja, um composto de partes racionais.

Mas, “mil cabeças” se erguem contra a hegemonia do racional, seja pelo voluntarismo, ou pela vivência irracional, ou pelo inconsciente, ou pela história voltada ao particular, ou pela atenção ao homem enquanto singular concreto etc. No entanto, o “sistema” continuou exibindo uma impressionante força, em grande medida por causa da aliança entre o conhecimento e o poder: o sistema, que, lembremos, possui estrutura racional, tornou-se como que coextensivo à própria realidade social.

Nesse processo parece que o acaso simplesmente desaparece e não se percebe um lugar para ele. Ou sim? Mas onde? Para o autor no cerne do próprio sucesso do sistema volta a aparecer no século 20 a figura desconcertante do acaso impondo certo revés ao racionalismo, surgindo algo como uma “aurora do acaso” (p. 47). Cita a ironia de Pascal, que pergunta se a história não teria sido diferente se o “nariz de Cleópatra fosse mais curto”.

Várias foram as tentativas então de acomodar ou contemplar o acaso ainda ao pensamento racional, interpretando-o como algo que lhe escapa, ou seja, uma determinação às avessas. São explicações do acaso que não vão além de uma situação-limite da realidade de forma que “ainda” não é possível uma explicação racional.

Mas, também busca-se considerar “positivamente”, se assim podemos dizer, o acaso em algumas atividades humanas, ou, como diz o autor, tornar presente o acaso numa certa conjugação da previsibilidade com a imprevisibilidade, uma ambiguidade que está presente, por exemplo, no futebol. Vale aqui uma longa citação:

“…Um jogo é armado de maneira a garantir a máxima previsibilidade possível, sempre de olho firme nos resultados, e, em boa medida, de fato os sucessos são previsíveis. O técnico é um especialista que calcula todas as forças e os melhores efeitos. O corpo do atleta e suas resistências podem ser medidas, o tipo de talento ou aptidão de cada um deixa-se conduzir em função de estratégias calculáveis, os grupos também são organizados segundo táticas precisas, e por aí afora. Tudo se passa, portanto, como se o grau de racionalidade compatível com a organização de uma partida de futebol pudesse atingir um nível considerável – todo o afinco dos técnicos regula-se justamente por tal ideia. Essa racionalidade fortalece-se ainda mais dada a existência de regras convencionais, que devem ser obedecidas por todos. Na primeira metade do século, Brecht percebeu com muita argúcia uma certa dualidade que invade os espectadores de uma partida de boxe, o grande esporte de massa da época. O dramaturgo de Na selva das cidades chama a atenção para essa estranha espécie de contradição que determina o comportamento do espectador: de um lado, uma irracionalidade que chega à beira de um certo histerismo, e, de outro, a perfeita atenção ao cumprimento das regras do jogo, acusando a presença de um espírito crítico que não adormece jamais. Um espetáculo esportivo obedece, portanto, a diversas e exigentes formas de racionalidade. Contudo, parece que a própria vida do jogo decorre da exploração dos acasos, do imprevisível, a racionalidade tropeça em ardis que configuram precisamente as virtudes do acaso: nada mais enfadonho do que um jogo restrito a artifícios racionais.” (p. 48-9 – grifos meus)

Nos últimos anos acentuou-se no âmbito do futebol um processo que poderíamos chamar de “cientifização”, esforço destinado a “garantir um determinado resultado”, o que equivaleria a domar (ou eliminar) completamente o acaso. Para tanto, as equipes responsáveis pelo treinamento e performance dos times incluem cada vez mais profissionais de diferentes disciplinas: psicólogos, nutricionistas, fisiologistas, estatísticos etc. Aliás, as estatísticas talvez sejam a mais evidente tentativa de orientar “racionalmente” as decisões dos técnicos e também de identificar as “causas” dos resultados. Um dos primeiros comentaristas de futebol a se valer e dar ênfase às estatísticas foi o gaúcho Rui Carlos Osterman (Rádios Guaíba e Gaúcha), hoje seguido por Paulo Vinícius Coelho com sua “prancheta do PVC”. No último campeonato mundial, vimos na própria transmissão da FIFA novas estatísticas, como o tempo médio de recuperação da bola de uma equipe. Uma exceção é quando se fala e se considera o talento. Diz-se que o talento resolve onde a técnica comum e a tática não resolvem, mas quando isso não ocorre o diagnóstico é: não conseguiu mostrar o seu talento… e aí buscam-se novamente razões.

Mas além do futebol, o nosso autor também cita o exemplo de algumas ciências (física, biologia), como da psicanálise, da literatura e mais amplamente da filosofia. Embora todas sejam interessantes e importantes, destaco aqui particularmente o caso da física contemporânea.

A física clássica foi o grande modelo da ciência moderna com seu rigor e seu determinismo racionalista onde o acaso não possuía lugar. Mas, a famosa frase de Einstein, “Deus não joga dados”, com a qual se contrapunha aos colegas que falavam em “indeterminação”, talvez seja o último eco da física clássica. Para a física quântica no plano do infinitamente pequeno e do infinitamente grande o acaso passou a adquirir uma dimensão cósmica.

Por um bom tempo acompanhei as reflexões de um físico quântico que foi aluno de Werner Heisenberg (considerado um dos pais da física quântica) chamado Hans-Peter Dürr (falecido em 2014), particularmente suas palestras. Uma das mais famosas era intitulada Wir erleben mehr als wir begreifen (Nós vivenciamos mais do que apreendemos). Ele fazia um esforço de “traduzir” conceitos importantes da física quântica para nós os leigos e também discutia suas consequências para nossa cosmovisão e mesmo nossa forma de compreender e estar no mundo.

Pois bem, em suas palestras costumava usar como ilustração um pêndulo (pode ser encontrado na internet no Youtube – Hans-Peter Dürr Pendel). Ele colocava o pêndulo na posição vertical, mas invertida (o peso para cima) e buscava colocá-lo exatamente no eixo vertical. Perguntava, então, se era possível saber para qual dos lados que ele iria cair? Em princípio, se o colocássemos exatamente na vertical ele hesitaria um pouco, mas, por alguma influência ambiental ele acabaria se movendo para um dos lados. Bem, mas se incluíssemos no cálculo todos os fatores ambientais e os controlássemos (por exemplo, o vento, o calor dos corpos circundantes e todas as forças infinitamente pequenas) seria possível prever seu comportamento? Teríamos que incluir no cálculo todo o “cosmos”, já que, em última instância, o bater das asas de uma borboleta no outro lado do mundo poderia determinar para que lado o pêndulo iria cair. A conclusão do físico é a de que sistemas instáveis são extremamente sensíveis e que se considerarmos o cosmos como algo vivo, o pêndulo parece dizer em determinado momento “eu sou livre”.[2]

A diferença de performance entre duas equipes permite, dentro de determinados limites, “prever” o resultado, mas o imponderável, o acaso está sempre à espreita – vide o sucesso da “loteria esportiva”. Ora, um sistema instável, como lembra nosso físico, é extremamente sensível. Se a capacidade de performance é muito desigual isso permite certo nível de previsão para qual lado o “pêndulo” vai tender, mas… um lance fortuito pode tornar o sistema novamente muito instável; a possibilidade disso acontecer nos mantém excitados – nada mais chato do que saber o resultado de um jogo que vou assistir em vídeo-tape. Quanto mais equilibradas as performances mais imprevisível e mais susceptível ao acaso será o resultado.

Quando o Brasil sofreu um gol quase no final do jogo contra a Croácia no último mundial, decisivo para sua derrota, novamente os analistas começaram a buscar as razões ou causas daquela derrota: decisões equivocadas do técnico, dos jogadores, problemas táticos, a convocação equivocada do Daniel Alves etc. (um analista chegou a fazer uma lista: dez razões que explicam porque o Brasil foi derrotado pela Croácia). Voltando às estatísticas: nesse jogo todas as estatísticas eram favoráveis ao time brasileiro, mas parece que elas foram derrotadas pelo acaso.

Mas, se observarmos o gol da Croácia veremos que o chute do atacante vai na direção do jogador Marquinhos, resvala nele e muda sua trajetória e com isso dificulta a defesa do goleiro brasileiro. Se considerarmos essa cena, podemos dizer que temos aí um exemplo de um sistema muito instável e extremamente sensível. Basta lembrar quantos chutes endereçados ao gol durante os jogos da Copa desviaram em defensores e ao invés de adentraram ao gol saíram pela linha de fundo. O que determinou que o desvio da bola, no caso do gol croata, tivesse o destino que teve e não outro? A contingência, o acaso ou o bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo? Quem sabe?


[1] BORNHEIM, Gerd. Racionalidade e acaso. In: NOVAES, A. (Org.). Rede imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

[2] Ele depois complexifica a análise ao interligar vários pêndulos que ele vai chamar de pêndulo-caos. Lembro aqui novamente de Borheim que fazendo referência a Nietzsche, diz que “o caos é como a acumulação do acaso” (p. 52)

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