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Este fim de semana fui presenteado pelo meu pai com um documento histórico acerca da educação física, mais especificamente sobre o ensino e treinamento do futebol. Para quem não sabe, meu pai também é professor de educação física e não é qualquer professor. Para meu orgulho e admiração, meu pai, Lino Castellani Filho, é uma das grandes referências da Educação Física brasileira e latino-americana. Professor aposentado da Unicamp, ex presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e ex Secretário Nacional de Esportes, meu companheiro (nos tratamos carinhosamente assim), presenteou-me não com uma produção dos seus tempos de Unicamp, CBCE ou Ministério do Esporte, mas com uma das suas produções dos tempos em que trabalhava na Secretaria de Esportes e lazer do Maranhão, em 1980. Ainda que suas produções de destaque sejam do campo da história da Educação Física, das políticas públicas e educação física escolar, esta produção aborda outra temática: o Futebol!    

Vale destacar, novamente, o ano desta publicação: 1980. Eu sequer havia nascido quando o professor Lino produziu este material!

Nesse momento pode estar se perguntando… “e daí?”.

Entremos então no tema central deste texto.

Nesta produção de pouco mais de 50 páginas, o professor Lino destaca a evolução histórica, evolução tática, regras e exercícios para aprimoramento técnico de alguns fundamentos do futebol. Se compararmos com qualquer publicação sobre futebol dos tempos atuais, certamente o teor seria significativamente diferente. Entretanto, o que causou certa surpresa e suscitou em mim a vontade de trazer esse tema para nossa reflexão e debate foi o fato de grande parte das escolas de esporte (mais conhecidas como escolinhas de futebol) e clubes ainda repetirem as mesmas estratégias de ensino elencadas em 1980 pelo professor Lino. Isso mesmo… mais de 40 anos depois desta produção, apesar dos significativos avanços no âmbito da produção teórica/acadêmica, com a proposição de inúmeras novas abordagens na pedagogia do esporte e, portanto, para o ensino e treinamento do futebol, as aulas e treinos continuam praticamente idênticas, como se tivéssemos enfrentando no campo da intervenção pedagógica, no decorrer destas 4 décadas, uma síndrome que nos paralisa no tempo. Uma síndrome que faz com que permanecêssemos em 1980, reproduzindo metodologias de ensino que, ao menos no campo teórico, já foram totalmente superadas.   

Há um número considerável de professores e treinadores que, mesmo com as críticas realizadas em diferentes e mais atuais estudos situados no campo da pedagogia do esporte, ainda elaboram suas ações pedagógicas pautadas no método analítico,  sustentando suas aulas e treinos na identificação de necessidades associadas ao gesto motor, à técnica dos fundamentos (domínio, passe, drible, chute etc) sem a preocupação com tomadas de decisões exigidas durante o jogo e com as questões táticas inerentes ao próprio jogo.

E tudo bem se o professor Lino propõe aulas e treinos pautados no método analítico. Afinal, em 1980, provavelmente, essa era a teoria que representava o que havia de mais avançado àquela época. Nem tudo o que é antigo, é velho ou ultrapassado. Há muita coisa ainda que os estudos contemporâneos não deram conta de superar. Mas este não é o caso dos estudos relacionados ao ensino e aprendizagem do futebol, afinal, a área da pedagogia do esporte avançou e a produção teórica nesta área se diversificou e se qualificou muito.    

Entretanto, 43 anos depois, é possível notarmos que esses avanços teóricos ainda não se manifestam nitidamente em muitas aulas e/ou treinos de futebol, evidenciando uma grande dificuldade se fazer chegar essa produção ao conhecimento de treinadores e professores e, também, deles traduzirem em suas intervenções pedagógicas (aulas e treinos) o que está preconizado pelo conhecimento científico contemporâneo. É justamente essa dificuldade, ou resistência, que faz com que aquilo escrito há 43 anos atrás ainda carregue consigo traços de atualidade.   

Se estamos pensando no processo de ensino-aprendizagem-treinamento do futebol para crianças e jovens, seja no âmbito escolar, clubes ou escolas de esporte, a iniciação esportiva deve se dar de modo que o futebol se adapte às características e necessidades das instituições de ensino/treinamento e, principalmente, dos praticantes. Ou seja, é preciso adaptar o esporte à criança e não a criança ao esporte. É preciso, como nos diz o professor João Batista Freire, tratar as crianças como crianças e devolver o jogo a elas.  

Dessa forma, ao entendermos que o principal estímulo das crianças à prática do futebol está relacionado ao prazer que sentem quando jogam, é importante que nossos planos e estratégias de ensino sejam elaborados didaticamente respeitando suas necessidades e dando grande destaque aos jogos e brincadeiras para que vivenciem o lúdico. 

Portanto, independente do objetivo das nossas aulas/treinos, é importante que pautemos nossas atividades no caráter lúdico, pois, principalmente em estágios iniciais de prática, e se tratando de crianças e jovens, o lúdico vivenciado em jogos e brincadeiras se constitui como elemento chave no processo de ensino-aprendizagem-treinamento. Vale destacar, no entanto, que não se tratam de quaisquer jogos ou brincadeiras, mas sim jogos e brincadeiras que oportunizem situações nas quais os jogadores não fiquem excessivamente com ou sem a posse da bola, que assumam diferentes níveis de complexidade, que, seja por situações reduzidas ou por adaptações nas regras, estimulem a tomada de decisão e a resolução de conflitos/problemas que se manifestam no jogo.

Neste aspecto, há inúmeras teorias que, guardadas suas especificidades, têm mostrado sua eficácia por pautarem-se no ensino do futebol tal como ele é jogado “na realidade”. Seu caráter coletivo, criativo, imprevisível, dentre outros, se expressa nestes jogos/brincadeiras fazendo com que os jogadores compreendam e apreendam a lógica do jogo e tomem decisões críticas e contextualizadas ao jogo, tendo como referência o ensino dos meios técnicos-táticos, defensivos e ofensivos (GALATTI, PAES, 2007; SANTANA, 2005).  

Passadas quatro décadas, não podemos mais elaborar e desenvolver nossos treinos e aulas tendo como referência o conceito de fragmentação do jogo, tal como preconiza o método analítico-sintético, no qual o ensino da modalidade esportiva se dá a partir da soma das partes que compõem o jogo, ou seus fundamentos. Este método apresenta como problema e elemento central, de acordo com Gallati e Paes (2007), a execução dos fundamentos de forma isolada, com ênfase na repetição de gestos motores para o aprimoramento técnico, sem o qual, de acordo com tais autores, a prática do jogo formal fica prejudicada. Não garante, assim, dentre outras necessidades impostas no e pelo jogo, a resolução de problemas de ordem tática.

Os treinos/aulas de futebol orientadas pelo método analítico partem do pressuposto de que o atleta/aluno ainda não sabe executar determinado gesto ou ação e só irá aprende-los de modo linear, indo do simples para o complexo, a partir da demonstração, imitação e repetição. Ao centrar-se na técnica, o professor/treinador busca que seu aluno reproduza modelos (drible como o Neymar, passe a bola como o Arrascaeta, conduza a bola como Messi etc) repetindo movimentos até torná-los automáticos.

Talvez o exemplo mais clássico deste método de ensino seja posicionar os alunos/atletas em filas para driblar cones dispostos simetricamente em linha reta. Diante destas circunstâncias, como já explanado por mim e pelo professor João Batista Freire em texto publicado na Universidade do Futebol (A diferença entre driblar ou fintar um cone e uma pessoa), “não há risco, não há mobilidade nos cones, não há ameaças, não há um tempo imprevisível para realizar o drible, não há tensão, não há diversão, não há prazer, não há jogo. O cone simplesmente fica ali, inerte, no lugar em que o colocaram, dócil, não mais que uma referência para repetições mecânicas de gestos previamente determinados. Sua função é simular a presença de uma pessoa, algo que nem de longe consegue”.

Talvez a qualidade da imagem abaixo retirada desta produção do professor Lino prejudique nosso olhar às filas para execução do passe. O tempo da publicação é significativo. Mas preocupante mesmo é pensar que tanto depois, grande parte das aulas e treinos de futebol permaneçam idênticas!  

De que forma, dispor nossos alunos e atletas em filas para fazer passes um de frente para outro garante a imprevisibilidade, aleatoriedade e o ambiente caótico inerentes ao futebol?

Vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar, Vini Jr. e mais alguns poucos, têm sua criatividade e capacidade de solucionar os problemas do jogo também cerceadas, tanto pelos treinos atuais, quanto pela conduta dos treinadores.

Ao estimularmos os praticantes de futebol a vivenciarem o jogo com base nos métodos de ensino apontados pelas pesquisas como mais eficazes, estaremos proporcionando a eles que compreendam a lógica do jogo e tomem suas decisões, de modo autônomo, inteligente e criativo, a partir das relações que eles estabelecem com os demais jogadores, sejam adversários ou companheiros de equipe, e também com a própria bola e o gol. 

É preciso, de uma vez por todas, rompermos essa paralisia que nos aprisionou em décadas passadas e darmos conta de fazer refletir em nossas aulas e treinos, como muitos já o fazem tão bem, o conhecimento científico contemporâneo produzido pela área da pedagogia do esporte. As perspectivas apontadas pelas pesquisas recentes são inúmeras e, apesar de distintas, partilham da mesma premissa de que colocar nossos alunos em filas intermináveis, driblar cones, realizar passes de frente para o companheiro etc, não é o melhor caminho para promover uma aprendizagem significativa, contextualizada e eficaz.

Texto por Rafael Castellani e, necessariamente, não reflete a opinião da Universidade do Futebol

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