Incubadoras de atletas ou a transgressão dos direitos da criança e do adolescente

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Por: João Batista Freire

Em 24 de setembro de 1990 o Brasil tornou-se signatário da Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU. O sofrimento das crianças durante as duas grandes guerras, especialmente na segunda, levou à iniciativa de reunir os países em torno da ideia de protegê-las dos maus tratos de vários tipos (bombardeios, exploração sexual, fome, desabrigo etc.), que resultou na elaboração da Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia da ONU, em 20 de novembro de 1959. Algumas boas medidas foram tomadas por alguns países mas, de modo geral, as crianças continuam sendo as maiores vítimas da estupidez dos adultos que dirigem o mundo.

O universo de desrespeito e agressões às crianças é enorme, porém, neste caso, limitaremos nosso empenho ao campo do esporte de maneira geral, e ao do futebol de maneira específica. O desrespeito às crianças e adolescentes ocorre, especialmente, na chamada iniciação ao esporte, e ele é praticado por parte de famílias das crianças, de dirigentes esportivos, de professoras, professores, técnicos, técnicas, políticos, judiciário, redes sociais e jornalismo, entre outros. Como seria por demais extenso detalhar o desrespeito por cada um desses setores, cabe-me, como educador e pesquisador, mais uma vez fazer considerações científicas sobre o absurdo cometido por aqueles que são responsáveis pela formação esportiva de nossas crianças e adolescentes. Aproveito para render homenagens aos que trabalham respeitando a dignidade humana, não importa a idade. Vamos às diversas dimensões do desenvolvimento humano, e como elas podem ser afetadas pelo desrespeito praticado no campo do esporte.

Moral: no campo da moral ocorrem, talvez os maiores equívocos e as maiores transgressões à criança e ao adolescente. Que sabem as pessoas que estão cometendo tais transgressões a respeito do desenvolvimento moral da criança e do adolescente? Eu poderia tomar de empréstimo inúmeras situações vividas por mim como educador. Ontem assisti à animação Flow, premiada com o Oscar deste ano, a história de um gatinho. Havia muitas crianças no cinema. De repente, numa das cenas iniciais, o gatinho está caminhando na floresta e ocorre uma inundação súbita, muita água, barulho, tudo vindo para cima do gato. Atrás de mim uma garotinha de uns 4 anos de idade começou a gritar desesperadamente com pena do bichinho. Ela gritava que ele ia morrer, coitadinho! E passou o filme todo falando, chorando, gritando com pena do gatinho. Aos 4 anos ela não entenderia a regra de que é preciso fazer silêncio na sala de cinema. Essa é uma regra para adolescentes e adultos. Ela mergulhou na história e a vivia como algo real. Não separava a ficção do filme da realidade de estar em uma sala de cinema. Para ela havia mesmo um gato que corria imenso risco de morrer na inundação. Os adultos ao redor achavam muita graça da garotinha, mas ela sofria de verdade. Assim são as crianças. Quando brincam de jogar bola, as crianças dessa idade não conseguem se colocar em outros pontos de vista que não os seus. Para elas o jogo de bola é um faz-de-conta, uma fantasia. Elas correrão todas atrás da bola, não importa sua direção. Querem apenas brincar, se divertir. Começam a apresentar vestígios de moral aos 5, 6 anos de idade mais ou menos. E esse processo de desenvolvimento levará anos até que elas tenham compreensão suficiente do que é regra, norma, lei etc. A norma ou regra, exige renúncia de interesses. A regra é feita das renúncias parciais dos interesses individuais. Crianças são incapazes de renunciar aos seus interesses, a não ser por imposições severas das crianças mais velhas e dos adultos. No entanto, vemos hoje crianças de 5, 6, 7 anos e mais sendo submetidas a regras de adultos, tanto em escolas de futebol, como em categorias de base de clubes ou em torneios e campeonatos. Mesmo quando se trata de adolescentes (temos que lembrar que infância e adolescência são períodos longos da vida), seria preciso também levar em conta o modo de entender as coisas desses jovens. Adolescentes são capazes, sim, de compreender regras, porém, ao mesmo tempo, adolescentes são pessoas que procuram novos horizontes, novas perspectivas, são questionadores do presente, precisam ser ouvidos, planejar, discutir. Ao envolver crianças e adolescentes no esporte é preciso se colocar no ponto de vista deles e não apenas no ponto de vista de quem ensina. No esporte há muito ensino e pouca aprendizagem, ou seja, respeita-se pouco quem aprende e se investe muito em quem ensina. Quando as crianças e os adolescentes podem brincar de jogar bola, além de poderem aprender melhor, podem viver em um ambiente com flexibilidade suficiente para resguardar o ritmo de desenvolvimento moral de cada pessoa.

Para as pessoas que pretendem evitar equívocos na educação esportiva, do ponto de vista moral, recomendo algumas leituras. Entre elas Jean Piaget, Lawrence Kohlberg e Yves de La Taille.

Motora: como sabem aqueles que estudam o desenvolvimento humano, o ser humano é um só, e essa divisão em dimensões, como estamos fazendo aqui, é um artifício didático, uma tentativa de facilitar a compreensão, dada a complexidade que constitui a criatura humana. Não existe um desenvolvimento motor desconectado de um desenvolvimento moral, por exemplo. Também sabemos que, em todas as dimensões do desenvolvimento humano, os ritmos variam significativamente de pessoa para pessoa. É possível encontrar crianças andando aos dez meses de idade, ao passo que outras só podem fazê-lo aos 16 meses por exemplo. Algumas crianças falam com 12 meses e outras somente com 20 meses e assim por diante. Portanto, encontrar crianças de 6 anos de idade muito habilidosas para controlar bolas pode ser sintoma de precocidade e não de talento especial. Há um detalhe muito importante quando do nascimento do ser humano que nos ajudaria a compreender, não só o desenvolvimento motor, mas todas as dimensões do desenvolvimento. Quando nascemos, somos bastante desprovidos de coordenações motoras. Conseguimos observar, enquanto movimentos ordenados, apenas aquilo que chamamos de reflexos inatos, isto é, respostas automáticas a estímulos, alguns dos quais desaparecem em poucos meses. Exemplos de reflexos inatos são o reflexo de sucção, o da marcha, o de preensão etc. Ao longo da vida, podemos adquirir reflexos condicionados. E por qual motivo o ser humano, ao contrário dos outros animais, nasce tão desprovido de coordenações? Trata-se de um recurso especial da natureza humana para que possamos nos adaptar às constantes mudanças de nosso meio ambiente, uma vez que o meio ambiente da criatura humana é mais cultural que natural. E, como sabemos, a cultura é algo que muda o tempo todo. Portanto, à medida que o tempo passa, a criança vai ajustando seus gestos desordenados à necessidade de ordenação. Como base para esse desenvolvimento ela tem, desde os reflexos, esquemas inatos de se equilibrar, mantendo uma postura equilibrada para os demais gestos, de segurar, gerador de todas as coordenações de manipulação, e de marchar, gerador das coordenações de deslocamento. Em torno dessa base a criança, de acordo com as experiências vividas em seu meio, transformará seus gestos desordenados em gestos ordenados, isto é, em coordenações motoras. O começo de tudo é essa desordem inicial. O fim, não existe, as coordenações prosseguem por toda a vida, mas possuem um período privilegiado, que é a infância.

A lei geral do desenvolvimento na natureza, de modo geral, inclusive a natureza humana, é a diversidade. A diversidade é a regra, não importa se na Mata Atlântica ou na natureza humana. Pode-se alegar que não é possível atingir níveis de campeãs olímpicas na ginástica artística se a especialização não se der precocemente. Num universo de gestos mecânicos e estereotipados, onde todas seguem os mesmos procedimentos, sim, porém, trata-se de crianças que trocaram a riqueza da infância por milhares de horas de rotinas de exercícios. Podemos discutir ideologicamente o que esperamos da infância, o que queremos para nossos filhos, mas não podemos dizer que uma criança, se pudesse escolher, trocaria a brincadeira por rotinas de exercícios semelhantes a trabalhos forçados. A experiência de preparar a criança para o esporte respeitando seu direito de ser criança, servindo-se de uma metodologia que tenha o lúdico como base, poucos arriscam. Uma metodologia lúdica talvez não levasse a rendimentos superiores à metodologia mecanicista, mas valeria tentar. Caso os rendimentos não fossem os mesmos, pelo menos garantiríamos uma vida mais feliz para essas crianças, em qualquer esporte, e um nível de respeito adequado. A humanidade precisa que crianças tenham o direito de ser crianças.

O que significa respeitar a diversidade quando envolvemos crianças no esporte? Significa que a base de qualquer gesto especializado é a riqueza do acervo motor acumulado. Toda criança deveria viver gama de movimentos suficiente para acumular um imenso banco de dados de gestos, sobre o qual se assentariam, com solidez, os gestos especializados do esporte. Isso demandaria anos e anos de experiências, estendendo-se à adolescência, porque o sistema nervoso do ser humano demora, até se consolidar completamente, perto de vinte anos. Somos a criatura viva que se mantém jovem por mais tempo.

No caso do futebol, seria possível ensinar crianças e adolescentes respeitando as leis da diversidade, do lúdico, do respeito à dignidade humana? Claro que sim. Pois se somos capazes de executar treinamentos exaustivos, rotineiros, mecânicos, transformando crianças em miniaturas de adultos, por que não conseguiríamos fazer o mais simples, o mais natural, que seria tratar criança como criança e adolescente como adolescente? Pois não foi assim que os brasileiros, desde o início do século XX aprenderam a jogar bola com tal maestria que se tornaram os melhores jogadores do mundo? Esquecemos isso? Pois vamos relembrar: o fabuloso futebol brasileiro, fonte de inspiração em todo o mundo, foi aprendido por crianças pobres, brancas e pretas, das periferias das cidades, brincando, se divertindo, criando, inventando. Como acham que Garrincha aprendeu a jogar bola? Será que a ficha não cai nunca para esse pessoal que não se cansa de explorar e desrespeitar crianças?

Se quiserem estudar mais sobre esse tema recomendo ler livros de Manuel Sérgio Vieira e Cunha, João Batista Freire, Roberto Rodrigues Paes, Alcides Scaglia, Rafael Castellani, João Paulo Medina e outros.

Afetiva: o esporte é o território dos afetos, isto é, das emoções, dos sentimentos, das paixões. Isso não significa que não haja razão no esporte, mas que, em determinados momentos, a razão não é superior. A tal ponto isso é fundamental no esporte que alguns técnicos o reconhecem e até incentivam. Lembro Phil Jackson, lendário técnico de basquetebol do Chicago Bulls, ao tempo de Michael Jordan, dizendo aos jogadores, em certas ocasiões: “parem de pensar e joguem”. Inteligente como ele era, sabia que ninguém podia parar de pensar, mas reconhecia que era o momento de jogar com as emoções, de juntar, num único momento, pensamento e emoção, um não se sobrepondo ao outro, ou até deixando que as emoções assumissem o controle. Também na vida cotidiana saber lidar com as emoções é fundamental. Há cerca de mil feminicídios por ano no Brasil, praticados por homens que, educados para serem inseguros quanto à sua masculinidade, portanto, para serem machistas, perdem completamente o controle sobre os afetos e matam mulheres. Emoção é algo educável. Devemos educar emocionalmente as pessoas para que elas possam ser equilibradas e não cometer desatinos. No calor de um jogo como o futebol, perder o equilíbrio emocional significa chutar o pênalti na mão do goleiro, tomar cartão vermelho, esquecer de marcar o atacante etc. A educação das emoções é um processo de uma vida inteira. No entanto, esperamos que uma criança de 6, 7, 10 anos seja capaz de lidar com as emoções de competições que não são feitas para elas, mas apenas uma miniaturização das competições adultas. Árbitros de competições infantis se comportam em relação às crianças como se elas fossem profissionais adultas. Pais cobram de seus filhos crianças comportamentos adultos durante treinamentos e jogos. No mundo do esporte pouco se reconhece o fato de que as emoções estão em formação e que as crianças precisam de um ambiente acolhedor, organizado ao molde delas e dos adolescentes, para que na vida adulta essas, então, crianças e adolescentes, sejam equilibradas, generosas, solidárias. Uma criança não consegue lidar com as pressões geradas pelas cobranças da família, dos professores, dos dirigentes, das torcidas, em relação a rendimentos. É comum crianças e adolescentes frequentarem escolas de futebol ou equipes de base e serem educadas para sentirem medo: medo de driblar, medo de chutar, medo de atacar, medo de defender, medo de errar, medo de tudo. Crescem e se tornam, se se tornarem, jogadores e jogadoras medrosos, incapazes de lidar com as emoções geradas pela imprevisibilidade típica de todo esporte. E como fazer para lidar com isso durante a educação esportiva (usarei o termo educação esportiva em vez de formação esportiva)? Todos temos medos em certas situações, mas, como educar para que a coragem se sobreponha ao medo, que a ousadia supere a insegurança, a autonomia seja maior que a dependência?  

Os profissionais da área que pretendem se aprofundar nesse tema poderão transitar por teorias de grandes autores como Freud, Winnicott, Vygotsky, Wallon, Klaus Scherer, LeDoux, James-Lange, Goleman e outros.  

Social: O ser humano é um animal gregário. Precisa se juntar para ter chances de sobrevivência. Foi o que fez, ao longo da história, embora tropece ainda nas habilidades necessárias para viver em sociedade. Um exemplo típico, tomando de empréstimo um universo específico, nós o encontramos no futebol. Não basta um jogador ter habilidades excepcionais no controle de bola; de nada vale ser um malabarista com a bola se não souber colocar tais habilidades a serviço do coletivo, isto é, do time que ele compõe com mais dez jogadores.

Com muita frequência, quando lidamos com crianças e adolescentes no futebol, deixamos de considerar as características de desenvolvimento desses alunos. Não levamos em conta, por exemplo, que a criança tem dificuldades de se colocar no ponto de vista do outro, algo indispensável para a vida em sociedade. Ela tende a investir seus esforços apenas para satisfazer seus próprios interesses, o que explica, num jogo de bola de crianças de até 7 ou 8 anos de idade mais ou menos, termos várias delas correndo atrás da bola sem se preocuparem muito com a equipe como um todo. Quanto aos adolescentes, sem dúvida são capazes de compreender a importância do coletivo, porém, são questionadores, cheios de dúvidas, e essa maneira de ver as coisas deveria levar professores e professoras a sempre conversar com eles, antes e depois das práticas.

A respeito das crianças, e isso veremos melhor quando tratarmos da dimensão lúdica, as práticas selecionadas para as aulas deveriam privilegiar o modo como as crianças lidam com o viver em grupo. Precisamos entender que elas estão aprendendo a viver em grupo, saindo de um estado de autocentrismo para um estado de heterocentrismo. Precisam de tempo e muitas experiências diversificadas para lidar com isso. Uma das hipóteses frequentemente colocadas em prática é a de impor comportamentos sociais artificialmente coletivos, em que as crianças agirão de acordo com imposições rígidas. Por outro lado, podemos respeitar o fato de que são autocentradas, apenas sugerindo, sempre que houver oportunidades, que poderiam agir de maneira mais coletiva. Melhor que isso seria escolher conteúdos em que as crianças tivessem que observar, ao mesmo tempo, a bola e o campo, a bola e os companheiros etc., criar situações em que precisam dar atenção a outros componentes do jogo além da bola. Dar boas aulas, formando não só o jogador, mas também o cidadão, requer criatividade, competência.

A obsessão por formar precocemente o craque de futebol, certamente por ver nele uma fonte de lucros, leva a equívocos terríveis. Quantos talentos não são desperdiçados por esses equívocos? Infelizmente parte dos responsáveis pela educação esportiva dos jogadores de futebol não é a que mais estuda, que mais se prepara, que mais se preocupa com a formação do ser humano.

Os que pretendem se aprofundar nesse tema certamente terão que passar por obras de autores como Durkheim, Max Weber, Norbert Elias, Zigmunt Bauman e outros.

Inteligível: trata-se de nossa dimensão intelectual, nossa capacidade de pensar, de criar, de refletir, de compreender, de nos fazermos inteligíveis. Quando nascemos, e durante alguns meses, por insuficiência de amadurecimento cortical, não somos capazes de pensar, tal como nós adultos entendemos o pensamento. Agimos por reflexos, por impulsos e por ajuda dos mais velhos. Aos poucos, com o amadurecimento das funções corticais, a imaginação passa a produzir seus frutos. Imaginação é essa capacidade de “ver” para dentro as experiências praticadas. Experiência humana é qualquer ação, desde caminhar, pegar, bater, ver, ouvir, tocar, até pensar, criar, lembrar etc. Tudo que fazemos pode ser recuperado pela imaginação e se tornar matéria prima para novas produções. É isso que nos faz humanos. Uma das produções privilegiadas da imaginação é o pensamento, esse fazer mental que nos permite compreender as ações realizadas ou a serem realizadas.

Vamos concordar que o futebol é um jogo extremamente complexo. Trata-se de um esporte, assim considerado porque é praticado por uma imensa comunidade. Exige poucas e rigorosas regras, capazes de normatizar as relações entre pessoas as mais diversas. Sua estrutura envolve um campo de grandes dimensões e um número grande de habitantes (22 jogadores, vários árbitros, plateia, meios de comunicação, dirigentes, técnicos, médicos etc.). O futebol é um escoadouro de culturas. Uma criança pode, quando muito, brincar de jogar futebol, e não praticá-lo em toda a sua complexidade. O pensamento de uma criança não é capaz de compreender toda essa complexidade. Exigir isso de uma criança é contribuir para comprometer sua formação intelectual. O pensamento de uma criança de 5 ou 6 anos, algumas delas alvos da cobiça de agentes e famílias (projetando-as como futuros craques de futebol), é do tipo fantasioso, que resolve os problemas por soluções mágicas. Monteiro Lobato, em sua obra para crianças, criou o pó de pirlimpim, usado pelas crianças do sítio do Pica Pau Amarelo para resolver, magicamente, os problemas. A criança acha que alguma coisa é porque ela acha que é e pronto! Uma vez perguntei, durante uma brincadeira, a crianças de 5 e 6 anos, como a gente poderia fazer para viajar para a Lua. Elas se serviram de um tronco de árvore caído no pátio da escola como foguete e, num passe de mágica, viajaram para a Lua. Como poderiam essas crianças lidar com a complexidade de um jogo como o futebol, ou com a ideia de serem craques no futuro. Quando criança eu também queria ser jogador de futebol, queria ser como Pelé, Nilton Santos e Garrincha. Mas era uma fantasia, meu gosto pessoal e não um plano de realidade adulta. Aos 7 anos mais ou menos a criança começará a compreender as coisas, razoavelmente se colocando fora de seu próprio ponto de vista. Mas isso é insipiente e dependerá do apoio de coisas concretas. Ela continuará achando, por exemplo, que seu pai é um herói, incapaz de ver defeitos nele, por dificuldade de considerar vários outros pontos de vista de análise. Uma criança de até 10, 11 anos de idade, terá muitas dificuldades para lidar com projeções no futebol. Jogará com as coisas imediatas: o drible preso ao momento, evitará o passe, chutará ao gol em qualquer oportunidade, exibirá suas próprias habilidades. Haverá exceções, crianças com amadurecimento precoce e, infelizmente, serão tomadas como regra para justificar o treinamento precoce das demais.

Se o ensino do futebol, ou de qualquer outro esporte, fosse feito a partir do ponto de vista da criança ou do adolescente, seria completamente diferente. No caso da criança começaria por ser totalmente lúdico, ou seja, o futebol para ela seria uma brincadeira. No caso do adolescente o ensino do futebol seria um promotor de autonomia, de emancipação, de independência. O ensino do futebol feito a partir do ponto de vista unicamente de quem ensina transforma o futebol para crianças e adolescentes em réplica mal resolvida do futebol adulto profissional.

O aprofundamento nesse tema pode ser facilitado pela consulta de obras de autores como Jean Piaget, Vygotsky, Wallon, Lino de Macedo, Luria e outros.

Lúdica: a dimensão lúdica trata dos estados em que realizamos uma ação sem qualquer outro propósito que não seja a própria ação. Uma espécie de fazer por fazer. Ou seja, quando retiramos da ação os compromissos com algo externo, com as cobranças, podemos vivê-la somente com as tensões internas, sem as pressões externas. Porém, quando uma criança vai ao esporte e é cobrada em resultados, por pais, agentes, professores e outros, parte do lúdico da ação esportiva é perdido em detrimento dessas pressões, muitas vezes insuportáveis para a estrutura de uma criança. Algo parecido ocorre com os adolescentes, porque, mesmo considerando seu poder de pensar virtualmente, por hipóteses, ele ainda não é suficientemente maduro emocional, moral e socialmente para suportar as cobranças por resultados.

O lúdico é aquele estado que nos alivia das tensões, que nos permite viver momentos de leveza, que nos permite viver sensações de realização frequentes, que faz crescer nossa autoestima. Quando a criança aprende esporte brincando, ela viverá ambientes em que sua autoestima estará alta e isso poderá repercutir positivamente por toda a sua vida.

O jogo, em suas materializações de brincadeiras, folguedos, danças, músicas, entre tantas possíveis, é o território privilegiado de desenvolvimento de uma criança. Ela pode praticar qualquer esporte, desde que seja em forma de brincadeira. Ela pode brincar de lançamento do dardo, de jogar basquetebol, de jogar futebol, de nadar etc., mas não pode treinar atletismo, basquetebol, futebol ou natação como se fosse um adulto pequeno. São coisas completamente diferentes e só não sabe isso quem não se preparou para ser bom professor ou boa professora, bom dirigente, bom pai ou boa mãe. A criança também pode participar de competições esportivas, porém, essas competições precisam ser adaptadas para atender às características da criança. Ela pode participar de um festival de atletismo ou de natação, onde todas as crianças correriam ou nadariam, por exemplo, sem que fossem classificadas ao final como melhores ou piores, e onde todas seriam premiadas com diplomas de reconhecimento pelas ações realizadas.

Quem pretender estudar melhor esse tema pode consultar as obras de Piaget, Vygotsky, Alcides Scaglia, João Batista Freire e outros.

Para finalizar, cabe a pergunta: e agora, o que fazer diante de tudo isso? Podemos encaminhar alguns trabalhos práticos para dar conta das advertências feitas ao longo do texto? Sim, foram feitas muitas advertências e, inclusive, várias denúncias. Todas as agressões contra a criança no esporte devem ser denunciadas. Além das denúncias de agressões, também fizemos denúncias contra a incompetência dos trabalhos. Não é vergonhoso verificar que as crianças aprendem futebol brincando entre elas melhor que nos momentos em que está frequentando uma escola de futebol (em boa parte dos casos)? O que há naquela brincadeira entre elas que ensina tão bem? E não foi assim que aprenderam os grandes craques da história do futebol brasileiro?

É bastante simples ensinar futebol ou qualquer outro esporte em um ambiente lúdico, respeitando a criança como criança e o adolescente como adolescente. Sim, eu sei que teremos a oposição de boa parte dos pais e dirigentes, mas esse é um problema que só pode ser resolvido com paciência, muito estudo, e boas conversas em reuniões com pais e dirigentes. Os pais, pouco informados, acreditam que colocar seus filhos em uma atmosfera de treinamentos adultos adiantará o processo e os tornará craques precocemente. Isso nunca aconteceu e não acontecerá (a não ser excepcionalmente, o que não pode ser tomado como regra), mas a ilusão permanece. Quando muito tal medida tornará os pais vítimas de maus agentes, que ganharão dinheiro à custa de alimentar essa ilusão.

Vou dar um único exemplo para mostrar como é simples o trabalho num ambiente lúdico. Simples, prazeroso, realizador! Vou escolher a brincadeira de pega-pega. Metade das crianças ficará de posse de uma bola (podemos usar vários tipos de bola, de borracha, de meia, de plástico, bolas oficiais, os que forem possíveis). A outra metade ficará sem bola. As crianças estarão descalças, porque jogar descalço facilita o desenvolvimento de habilidades mais refinadas e previne futuras lesões. Uma das crianças será escolhida como pegador, os demais terão que escapar à sua perseguição. O pegador correrá atrás da criança que ele decidir perseguir, mas terá que tomar a bola do perseguido – não basta tocar na bola. O perseguido poderá driblar o pegador, poderá fugir dele em velocidade, ou poderá passar para alguém que estiver sem bola. Quando o pegador tomar alguma bola, aquele que a perdeu passará a ser o pegador.

Variação dessa brincadeira – Podemos aumentar o número de pegadores para dois ou três. Quando um pegador tomar uma bola, deixará de ser pegador o que estiver há mais tempo nesse papel. Outra variação – Podemos aumentar ou diminuir o número de alunos sem bola.

Essa brincadeira eu criei agora. A partir de qualquer brincadeira popular podemos criar inúmeras brincadeiras para ensinar futebol ou outro esporte. No caso dessa brincadeira minha intenção era ensinar o drible, o desarme, o passe, e a condução de bola, portanto, uma brincadeira bem ampla. Quantas vezes, em quinze minutos, por exemplo, cada criança conduzirá a bola, driblará, desarmará ou passará? Não dá para calcular, pois o número de repetições será muito grande. Além disso, quando ela conduzir a bola, será para fugir do pegador, e isso fará sentido para ela. Quando ela driblar, será por um motivo forte na brincadeira, ou seja, realizará gestos que farão sentido para ela, que não afrontarão sua inteligência. Por outro lado, se ela tiver que passar a bola para um colega com repetições mecânicas, apenas para obedecer ao comando de um professor, que sentido tem isso para ela? Serão passes que jamais acontecerão num jogo de futebol. Ou quando ela tem que, obedecendo ao comando de um professor, conduzir a bola contornando cones. Quando isso acontecerá num jogo de futebol? Já viram cones espalhados pelo campo durante um jogo contra um time adversário?

A criança é inteligente e isso tem que ser respeitado. A aula de futebol não pode ser uma agressão a essa inteligência. A criança tem que aprender futebol para se tornar mais inteligente, mais segura emocionalmente, mais solidária, mais cooperativa, mais sociável, mais habilidosa.

Usei apenas um exemplo, e poderia usar dezenas ou centenas de outros. No entanto, continuamos insistindo na velha fórmula de querer ensinar por ações descontextualizadas, sem sentido, mecânicas. E nos frustramos, porque não ensinamos.

Uma sugestão final: em vez de colocarem como objetivo no ensino futebol para crianças formar craques futuros, coloquem como objetivo fazê-las felizes. Certamente, com isso, as chances de que um dia venham a ser craques aumentarão, mesmo que não seja esse o objetivo.

Foto: Oli Scarff/Getty Images

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