Futebol, um esporte transgressor

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Por: João Batista Freire

É bastante incomum assistirmos o desenvolvimento de um talento para o futebol brasileiro nas chamadas “escolinhas de futebol”. Sem pretender desrespeitar as exceções que, certamente, existem, não há ambiente para desenvolver habilidades diferenciadas em futebol nessas escolinhas. Também não é muito frequente o desenvolvimento de talentos nas equipes de base dos clubes profissionais de futebol. Os meninos e meninas chegam a essas equipes, vindos dos mais diversos recantos do Brasil, cheios de habilidades, mas elas raramente crescem no ritmo que vinham crescendo em seus recantos, nas ruas onde aprenderam a jogar bola. Geralmente, só sobrevivem ao tempo consumido na base os excepcionais.

O futebol é, basicamente, um esporte de transgressões. Ele começa por ser uma espécie de transgressão biológica; somos animais bípedes, evoluímos para nos apoiarmos sobre os pés e manipular as coisas com as mãos. No futebol, ao contrário, manipulamos a bola com os pés. Os pés são as mãos dos jogadores de futebol. Além disso, enquanto os demais esportes com bolas as fazem transitar acima da linha de cintura, próximas à cabeça, no futebol a bola transita ao rés do chão, bem distante da cabeça. A maioria dos esportes exige paramentos especiais para serem praticados. No futebol pode-se jogar quase nu e descalço. Raramente se vê um esporte sendo praticado sem equipamentos e locais específicos. O futebol pode ser jogado em qualquer lugar, com ou sem grama, com terra ou areia, na lama, quase dentro da água, com chuva ou com sol, de dia ou de noite, com traves ou sem traves. No basquetebol, por exemplo, quando o árbitro marca uma falta, imediatamente todos se posicionam para aguardar a cobrança, sem discussões, e com raras exceções. No futebol não há marcação de falta indiscutível, todas as regras são relativas. É o único esporte em que falta pode não ser falta e não falta pode ser falta. O único esporte em que falta fora da área é uma coisa e falta dentro da área é outra. Por enquanto há nove pessoas encarregadas de fiscalizar as regras em cada jogo e, no futuro, talvez haja mais pessoas e equipamentos para isso.

Creio que não há erro maior no futebol que insistir em domesticar um esporte que é, naturalmente, transgressor. Queremos que os jogadores se comportem como se estivessem cumprindo rotinas cartoriais em um esporte que se mostra, desde suas raízes, avesso aos padrões estabelecidos.  

O que leva o futebol a ser tão transgressor? Se quisermos ainda podemos aumentar a lista das transgressões. Que tal pensar que boa parte dos esportes deriva de práticas lúdicas antigas em que as bolas representavam o sol e deuses, por isso manipuladas da cintura para cima e na direção desse sol e desses deuses? Homenagens ao deus, figura masculina, ao pai. Aí passamos ao futebol, com bolas manipuladas da cintura para baixo, na direção da terra, não do deus masculino, mas da deusa terra, do feminino, da mãe. Haja transgressão! Talvez tanta transgressão se deva ao fato de se tratar de um esporte de grande instabilidade. O chão, por onde rola a bola, por exemplo, por mais que a grama seja bem tratada, é repleto de irregularidades a desviar a trajetória da bola, a enganar o jogador, a surpreender o goleiro. Durante um ataque, o defensor torce para que o atacante repita as jogadas de sempre, neutralizadas com facilidade, e o atacante se desespera para conseguir fazer algo diferente que traia a expectativa do defensor.

Do ponto de vista das teorias da complexidade, nada, neste universo se repete. Nem as pedras são iguais a cada instante que passa. Teoricamente é impossível repetir ações. Porém, podemos realizá-las de modo que guardem bastante semelhança com anteriores. A arte de fazer com que sejam diferentes é o que torna o jogador de futebol eficiente, competente, decisivo. Ele pode trazer a bola da ponta direita para o bico da área e chutá-la ao gol cem vezes, mas fará o gol quando fizer isso com diferença suficiente para surpreender defensores e goleiro. Entre todas as transgressões possíveis no futebol, nenhuma será maior que a transgressão dos padrões estabelecidos, das rotinas, dos posicionamentos rígidos, das táticas engessadas. Treinar para lidar com a complexidade, com a imprevisibilidade, com a transgressão, essa é a questão básica que poucos ousam enfrentar. Em um esporte que tem o DNA da transgressão é preciso saber ser transgressor. Em um esporte que tem a imprevisibilidade exacerbada como núcleo, é preciso aprender a jogar com ela.

De tal maneira consolidou-se uma cultura de medo do enfrentamento do que é, na realidade, o futebol, que o que mais se assiste nele, das equipes de base aos grandes clubes, é a mesmice modorrenta de jogadores guardando posições como se fossem robôs guiados por inteligência artificial. Nada é mais punido que a transgressão dos esquemas pré-estabelecidos. É o que tem matado o futebol dos meninos e meninas talentosos nas equipes de base. Punir a transgressão é matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. O sonho de todo marcador no futebol é o posicionamento rígido dos jogadores adversários. A transgressão do posicionamento é o inferno dos defensores. Não defendo que as regras de relacionamento entre as equipes em cada partida sejam transgredidas, pelo contrário, devem ser obedecidas. Porém, mesmo nesse caso, a transgressão persistirá. A tarefa dos árbitros seguirá árdua.

E então, para não me alongar muito, vamos ao fecho. Como ser coerente com as características do jogo de futebol e aprender a ousar, a transgredir, a ajustar-se ao que o futebol realmente é? Comecemos pelo fato de que os jogadores de uma equipe deveriam ser os mais diferentes possíveis uns dos outros. Uma boa equipe não é formada de jogadores com o mesmo comportamento, mesma habilidade, mesmo tamanho, mesma personalidade. Pelo contrário, quanto mais diferentes uns dos outros, maiores as possibilidades de um conjunto harmonioso que saiba lidar com a imprevisibilidade e a transgressão aos padrões. Pensemos na questão da imprevisibilidade. Vamos considerar uma equipe de futebol como uma pequena sociedade. Trata-se de uma sociedade que, por menor que seja, tem uma estrutura extremamente complexa. E, pela dinâmica do jogo, a surpresa será sempre a regra. Surpresa significa novidade. Os jogadores terão que aprender a conviver com o novo, o inusitado. Que não esperem que as coisas se repitam. Que não treinem para lidar com rotinas, com o igual. Porém, só há uma saída para isso. Precisam aprender a produzir autonomia e criatividade. Algo que não acontecerá se a autoestima dos jogadores estiver baixa. Tarefa número um dos treinadores, portanto: elevar a autoestima dos jogadores. Algo que precisará ser feito durante os treinamentos, durante conversas informais, durante as refeições, no vestiário, nas entrevistas e durante e após os jogos, entre outras situações possíveis. Autoestima é a palavra-chave do sucesso.

Foto de capa:  Nelson Coelho/Placar

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