Saúde Mental: Ciência e Performance Aplicada ao Futebol

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Por: Ricardo André Encarnação

No dia 15/07/2025, a Universidade do Futebol realizou uma roda de conversa conduzida por Maurício Rech — mestre em Psicologia e Saúde, educador, pesquisador e ex-diretor executivo de futebol profissional e de base.

evento exclusivo contou com a participação de especialistas nacionais e internacionais das áreas de futebol e psicologia, incluindo:

  • Psicólogos
  • Psiquiatras
  • Diretores de futebol
  • Coordenadores (técnicos, metodológicos e de performance)
  • Atletas profissionais
  • Mães de atletas
  • Assistentes sociais

Representantes de clubes como São Paulo, Red Bull Bragantino, Internacional-RS, Grêmio, Vasco e da Federação Paulista de Futebol estiveram presentes.

Este artigo sintetiza os principais debates e conclusões do encontro.

Introdução

A saúde mental no futebol é, ainda hoje, uma dimensão frequentemente negligenciada, apesar da crescente evidência científica que sustenta sua importância para o rendimento desportivo e bem-estar dos atletas. O professor Medina, iniciou a roda de conversa, destacando a urgência de integrar a saúde mental no cotidiano dos clubes, rompendo com o paradigma tradicional que prioriza exclusivamente o desempenho físico e técnico. A proposta deste resumo é refletir, com base em testemunhos e evidências científicas, sobre a centralidade da saúde mental no futebol contemporâneo, apresentando desafios, práticas emergentes e caminhos possíveis para uma cultura desportiva mais humana e sustentável.

Maurício Rech, cuja trajetória profissional transita entre a advocacia desportiva e a psicologia aplicada ao desporto, representa uma voz qualificada nesse debate. Ao suspender temporariamente o futebol em 2014 e retornar em 2023 com uma nova formação em psicologia, neurociência e saúde, Rech exemplifica como a experiência prática pode ser enriquecida com conhecimento científico, contribuindo para transformar o ambiente futebolístico.

Fundamentos Científicos da Saúde Mental

Ao contrário da tradição cartesiana que nos ensinou a ver o ser humano como um ser predominantemente racional, a neurociência contemporânea tem revelado que somos essencialmente emocionais. Emoções influenciam a tomada de decisões, moldam comportamentos e afetam o rendimento em contextos de alta pressão, como o desporto. A investigadora brasileira Susana Herculano contribuiu significativamente para esta compreensão ao demonstrar que o cérebro humano possui aproximadamente 86 mil milhões de neurónios, formando cerca de quatro bilhões de conexões sinápticas — uma rede intrincada que sustenta não apenas funções cognitivas, mas sobretudo emocionais.

Neste contexto, a psicologia positiva, particularmente através do modelo PERMA (Positive Emotion, Engagement, Relationships, Meaning, Achievement), assume um papel relevante. Longe de promover uma visão irrealisticamente otimista da vida, o PERMA enfatiza o uso de forças pessoais como ferramentas para enfrentar desafios e alcançar equilíbrio emocional. No futebol, a sua aplicação pode significar maior resiliência, coesão de grupo, e motivação intrínseca, fatores fundamentais para o sucesso sustentado.

Experiências Práticas e Casos Reais

O testemunho de Gabriel Bussinger, treinador em início de carreira, ilustra como a insegurança e a ausência de autoconhecimento podem comprometer a liderança e a dinâmica de grupo. Ao adotar um estilo autoritário, fruto do medo de perder o controlo do balneário, Gabriel reconheceu posteriormente a importância da gestão emocional e do desenvolvimento da inteligência emocional como pilares para uma liderança eficaz.

De igual modo, Deis Chaves compartilhou os impactos psicológicos do colapso institucional vivido num clube profissional, salientando a fusão entre paixão e trabalho no futebol como um fator agravante para o adoecimento psíquico. O seu relato reforça a urgência de criar ambientes desportivos que respeitem os limites emocionais dos profissionais.

Élio Carravetta, por sua vez, define o treino desportivo como um processo de “neuroaprendizagem”, onde o desenvolvimento cognitivo e emocional é tão determinante quanto a habilidade técnica. Atletas como Cafu e Michael Jordan são exemplos de sucesso baseado não apenas em talento, mas em domínio emocional e capacidade de aprendizagem adaptativa.

Desenvolvimento Infantil e Ambiente Seguro

A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de modificar-se em resposta à experiência — desfaz o mito de que “pau que nasce torto não endireita”. Tal conceito é essencial no contexto do futebol de formação, onde jovens atletas estão em processo de maturação cerebral. No entanto, a exposição prolongada ao stress, especialmente durante a infância, pode comprometer essa plasticidade, afetando negativamente o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental.

Estudos demonstram que o stress crónico, frequentemente presente em crianças oriundas de contextos de vulnerabilidade social, gera alterações estruturais no cérebro. Tais alterações estão associadas a maiores índices de ansiedade, défice de atenção e comportamentos desregulados, influenciando diretamente o percurso desportivo e de vida desses jovens. Assim, a criação de ambientes seguros, afetivos e previsíveis é uma condição sine qua non (indispensável) para a promoção da saúde mental e do rendimento desportivo.

Relatos de Experiências no Futebol de Formação

Os relatos sobre o futebol de formação são particularmente preocupantes. Fabrício Vasconcellos descreve situações de atletas marcados por tragédias familiares, como pais assassinados e mães viciadas. Estes jovens, frequentemente rotulados como indisciplinados, são, na verdade, produtos de um sistema que os expõe a traumas sem oferecer suporte emocional. O resultado são trajetórias marcadas por instabilidade, inadaptação e, muitas vezes, abandono precoce do desporto.

Ana Teresa Ratti, mãe de um atleta de 13 anos (na data do acontecimento), criticou a prática de separar precocemente as crianças das suas famílias. O caso do seu filho, único selecionado entre mais de mil candidatos, revela a pressão desproporcional imposta a jovens atletas. A comparação com um modelo existente num clube europeu — que integra escola, família e clube — sugere caminhos mais humanos e sustentáveis para a formação e desenvolvimento do potencial desportivo dos atletas.

Modelos Inovadores e Alternativas

O modelo adotado pelo Red Bull Bragantino, apresentado por Leandro Floriano, representa uma alternativa à cultura dominante do sofrimento e da pressão de crescimento precoce no futebol. Ao manter os jovens atletas nos seus núcleos familiares até aos 13 anos, o projeto visa promover uma infância saudável e proteger os jovens das pressões desmedidas do alto rendimento.

Este modelo também desafia a narrativa comum de que o sucesso exige sofrimento. A ideia de que “sem dor não há ganho” normaliza práticas abusivas e negligencia os danos psicológicos a longo prazo. Ao contrário, uma cultura de bem-estar e suporte pode gerar atletas mais resilientes, motivados e preparados para os desafios do desporto profissional.

Perspectiva Internacional dos jovens atletas

Na sua intervenção, André Encarnação abordou a difícil adaptação dos atletas estrangeiros e mais especificamente de jovens atletas brasileiros em Portugal, destacando a ausência familiar como um fator crítico para a saúde emocional e o desempenho desportivo nos primeiros tempos no novo país. As dificuldades de integração cultural, as barreiras linguísticas – no caso dos atletas provenientes de países não pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – e as mudanças alimentares, são elementos que agravam o sentimento de isolamento e dificultam o sucesso desportivo. Por outro lado, revelou que a constante evolução tecnológica facilitou o contacto e reduziu o sentimento de distância familiar, isto quando comparado com o seu início da atividade profissional em 2010.

A pressão por resultados imediatos em clubes estrangeiros também contribui para elevar os níveis de stress e ansiedade entre os jovens atletas. Trata-se de uma nova realidade – independentemente de ser melhor ou não do que a da sua proveniência – sendo a mesma conhecida pelas ações de scouting que realizou nos países dos atletas selecionados.  A ausência de suporte psicológico adequado nesse processo de transição internacional, reforça a importância de um acompanhamento emocional contínuo e individualizado para os atletas e staff do clube que os acolhe.

Soluções e Caminhos

A psicoeducação desponta como ferramenta estratégica para transformar a cultura do futebol. Ao capacitar atletas, treinadores e gestores para reconhecer e lidar com as próprias emoções, promove-se uma maior autoconsciência e empatia. Esta abordagem é especialmente eficaz quando integrada em programas de formação continuada, permitindo a atualização constante de práticas e valores.

A mudança, no entanto, deve começar em nível individual. Como um “trabalho de formiguinha”, requer que profissionais conscientes encontrem aliados dentro das estruturas dos clubes, formando redes de apoio e disseminação de boas práticas. A capacitação contínua é uma exigência ética e estratégica: profissionais bem formados são capazes de construir ambientes mais saudáveis, produtivos e humanos.

Conclusão

A saúde mental no futebol precisa deixar de ser uma exceção para se tornar uma prioridade. As evidências científicas, os relatos de profissionais e os modelos alternativos apresentados neste artigo demonstram que o bem-estar psicológico não é apenas compatível com o alto rendimento — ele é, de facto, uma das suas condições mais importantes.

Romper com a cultura do sofrimento, da pressão para um crescimento precoce e da negligência emocional exige coragem, investimento e compromisso com o ser humano que existe por trás de cada atleta. É necessário reconfigurar o futebol como espaço de desenvolvimento integral, onde corpo, mente e emoção coexistam de forma equilibrada. Atualmente a saúde mental é imposta como uma das maiores urgências sociais, o futebol — com sua visibilidade e poder simbólico — tem a oportunidade e a responsabilidade de liderar essa transformação dos jovens atletas à escala global. A mudança de paradigmas depende de todos os gestores desportivos, desde as escolas, clubes de formação aos clubes de topo, de modo a salvar e guardar o talento e promover o desenvolvimento desportivo, intelectual e social de todos os atletas.

Foto: Vitor Jubini/A Gazeta

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3 respostas em “Saúde Mental: Ciência e Performance Aplicada ao Futebol”

Excelente artigo! Venho abordando essa problemática há muito tempo. Como filósofo clínico especialista, coaduno dos pensamentos e reflexões e acrescentaria o linguajar mais “boleiro” para o entendimento extensivo. Aliar uma boa formação acadêmica com vivências práticas é o que melhor prediz uma aceitação por parte dos próprios atletas.

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