Partindo de uma visão atual do futebol, que propõe um treinamento que se trabalhe as vertentes física, técnica, tática e psicológica de maneira integrada, pensou-se que o preparador físico não teria mais o espaço e a importância de outrora. Mas, o profissional desta área continuou sendo essencial nos clubes e parte da engrenagem de uma comissão técnica, desde que esteja adaptado às exigências do momento.
André Galbe trabalha no time sub-20 do Corinthians e, recentemente, já como coordenador do departamento nas categorias de base, vivencia esta nova perspectiva da função. Os desafios já se apresentam no excesso de jogos e tempo de recuperação reduzido dos atletas, problemas ditos e repetidos no profissional e que também atrapalham o desenvolvimento dos garotos.
“Não precisamos nos apegar a aquela vitória no último minuto de jogo, pois isto pouco ou nada tem a ver com o treinamento físico. Temos que nos fazer importantes dentro daquilo que é essencial para o futebol moderno. O grande desafio é render mais treinando menos e isto não se consegue de qualquer jeito. São pequenos detalhes que fazem a diferença, e todo profissional é importante”, diz Galbe.
O preparador físico, que se especializou em treinamento e alto rendimento em uma universidade russa e tem como trabalho marcante a participação na classificação do Estoril (Portugal) para a Liga Europa, diz que as atividades no Corinthians têm ligação com a forma de jogar da equipe, aplicadas em trabalhos específicos. Entretanto, Galbe afirma que apenas o treinamento por meio do jogo não atende todas as necessidades dos atletas.
“O treinamento físico complementar, e não querendo ser protagonista, é muito importante e existe no mundo todo”, defende.
Nesta entrevista à Universidade do Futebol, André ainda dá detalhes de como é organizada a semana de treino das categorias de base do Corinthians e fala sobre o trabalho de desenvolvimento dos jovens jogadores. Confira:
Universidade do Futebol – Fale de sua formação e conte como ingressou no futebol?
André Galbe – Minha graduação foi em Educação Física em 2004. Depois, fiz pós-graduação em treinamento desportivo e também em fisiologia do exercício. Por fim, fiz especialização em treinamento e alto rendimento na Universidade de Cultura Física, Esporte e Turismo da Rússia, em 2009.
Comecei no futebol profissional como professor estagiário em um centro de treinamento que trabalhava desde a iniciação esportiva até grupos de jogadores profissionais sem clubes. No ano de 2005, já graduado, realizei um projeto de preparação física no Clube Pequeninos do Jockey com as equipes que iriam disputar algumas competições pela Europa e, no retorno desta excursão, acabei contratado para o sub-15 e 17 do Desportivo Brasil, onde fiquei até 2011 depois de cumprir todas as etapas, passando inclusive pelo profissional.
Depois, recebi convite para ser o preparador físico da equipe profissional do Estoril, de Portugal, onde realizei duas temporadas completas (2011 e 2012) com um título e conquista inédita de vaga para a Liga Europa. Aí, voltei de Portugal direto para o Mogi Mirim, onde disputamos a Série C do Brasileiro em 2013 e o Paulistão de 2014.
Eu cheguei no Corinthians em maio de 2014 para exercer a função de preparador físico do sub-20 e fui promovido recentemente para coordenador da preparação física na base.
Universidade do Futebol – Quais as principais dificuldades que o futebol atual impõe aos preparadores físicos dos grandes clubes?
André Galbe – Com certeza, o calendário com grande número de jogos e muitos quilômetros para percorrer entre um Estado e outro.
Na minha opinião, e por ter vivenciado tal experiência, jogar duas vezes na semana não é a pior parte, e sim as viagens com logísticas difíceis e os horários dos jogos de meio de semana que terminam tarde e atrapalham a rotina de sono e alimentação dos jogadores, o que interfere diretamente na questão da qualidade da recuperação. Com tudo isso, além da comissão técnica ter que administrar o desgaste dos atletas, é preciso conter a ansiedade em realizar uma nova sessão de treino, que em muitos casos não é aconselhável.
Nas categorias de base, especificamente em São Paulo, o calendário é favorável, pois há condições de darmos férias para os atletas e comissão técnica e temos tempo suficiente para preparar as equipes antes das competições principais.
Encontramos algumas dificuldades com o excesso de campeonatos que, por melhor que seja o nível técnico, não são obrigatórios e a ânsia em participar de tudo que aparece sobrecarrega o período competitivo de algumas categorias.
Outra dificuldade é a rotatividade e o grande volume de atletas por categoria, que condiciona o treinamento no que diz respeito à otimização da sessão e a quantidade da qualidade da prática diária de cada atleta.
Universidade do Futebol – Quais os principais métodos que são utilizados na preparação física do Corinthians atualmente? É realizada algum tipo de periodização e como ela é feita e dividida por categorias?
André Galbe – Não falamos em métodos no Corinthians, e sim em princípios de treinamento e conteúdos essenciais. O grande princípio do treinamento aplicado a todas as categorias é o da especificidade. Princípios como individualidade biológica, sobrecargas e continuidade ganham mais importância de acordo com a categoria.
Os conteúdos relacionados à preparação física precisam ser respeitados, porém, fica difícil de adotar ou criar um método próprio por falta de estrutura, sendo que as nossas instalações não atendem todas as categorias na questão de disponibilidade dos espaços, horários e materiais, cenário que está prestes a mudar com a inauguração do nosso novo centro de treinamento da base.
Do sub-10 ao 14, os garotos cumprem um programa de desenvolvimento motor associado a fundamentos técnicos que indiretamente contribuem para o condicionamento físico geral.
A partir do sub-15, é dado uma atenção especial à capacidade de força. Nosso programa de treinamento de força visa dar suporte aos componentes técnicos e táticos. Em casos especiais, a prescrição é individualizada, fazendo ajustes pontuais nas necessidades dos atletas.
Não usamos um método específico, e sim uma ideia funcional de força aplicada ao movimento dando um sentido mais dinâmico e coerente no nosso ponto de vista.
Não temos uma periodização padrão, cada categoria organiza sua temporada da melhor forma possível, mas sem abrir mão dos conteúdos.
Universidade do Futebol – Como é feita a divisão entre trabalhos gerais e específicos? Qual o papel de cada um na preparação dos jogadores?
André Galbe – O geral é o que chamamos de complementar e que envolve o treinamento de força, velocidade, neuro proprioceptivo, flexibilidade e as técnicas de recuperação. São geralmente aplicados no início da sessão no lugar do aquecimento tradicional. O foco do treinamento geral é o próprio treino subsequente e o objetivo é estimular bem os atletas para a especificidade. Seria como treinar para melhorar o treino e, consequentemente, o jogo.
O trabalho específico é determinante na preparação física dos atletas e por isso é aplicado todos os dias da semana. Ele que molda todas as capacidades, promovendo uma adaptação única e intimamente ligada à forma de jogar da equipe.
O exercício geral tradicional como a corrida, por exemplo, não é descartado. Utilizamos com atletas acima do peso, em transição do departamento médico ou com alguma restrição momentânea.
Universidade do Futebol – Vocês se utilizam de jogos reduzidos na preparação física? Caso sim, como são alteradas as variáveis de treino de modo a atingir os objetivos propostos?
André Galbe – Utilizamos sim, porém a preparação física nunca é o objetivo principal, e sim uma consequência. Nem por isso desconsideramos a importância do componente físico, que é estimulado o tempo todo.
Já é conhecido que alterar o espaço de jogo, número de atletas, ter baliza ou não, criar regras e a interatividade com o treinador modificam as características físicas dos exercícios e alteram a densidade das ações e os componentes de força e resistência.
De forma geral, espaços menores exigem muito do componente neuromuscular, consequentemente são exercícios mais curtos e com mais tempo de intervalo.
Espaços maiores, com número de jogadores ajustado, exigem muito do componente cardiorrespiratório, permitindo uma recuperação ativa dentro do próprio exercício, que faz com que este formato possa ser aplicado por períodos mais longos.
Universidade do Futebol – Quais ferramentas são utilizadas por vocês para planejar, quantificar e avaliar as cargas de treinamento?
André Galbe – Utilizamos a percepção subjetiva de esforço (PSE) para calcular a carga. A PSE é uma escala adaptada, com âncoras numéricas e verbais onde classificamos a sessão de treino e o jogo por meio de uma nota dada pelos atletas. Sempre ao final de cada sessão, passamos de forma individual uma tabela com valores de zero (0), que representa estado de repouso, a dez (10), que representa esforço máximo.
Está nota multiplicada pelo tempo de atividade do atleta nos dá a carga de treino expressa em unidades arbitrárias (UA).
Além disso, nós monitoramos treinos e jogos com sistema de GPS, onde os dados mais relevantes são distância percorrida, número de ações intensas e o tempo que o atleta permanece andando ou parado durante o trabalho.
Universidade do Futebol – Você poderia falar, de modo geral, como é organizada a semana de treino das categorias de base do Corinthians?
André Galbe – No sub-20, nós utilizamos um microciclo padrão com seis a sete sessões de treino, que são divididas em quatro partes. Começamos com um treino físico complementar, que substitui o aquecimento tradicional e tem duração de 20 minutos. Depois, nós partimos para 12 minutos de exercício analítico, em que treinamos fundamentos com combinações de passes. Aí vem a parte principal, que dura de 40 a 50 minutos e contempla o desenvolvimento do modelo de jogo. Na parte final, reservamos 10 minutos para a prática de fundamentos com supervisão. De segunda a quarta-feira, o foco é o nosso modelo e comportamento. Quinta e sexta-feira, entra a aplicação em função do adversário.
Universidade do Futebol – Como é feito o monitoramento para saber se os atletas estão em estirão de crescimento. Vocês utilizam essa informação para fazer algum ajuste individual na periodização do treinamento? E caso usem, como é feita a intervenção? O volume de treino desse adolescente é reduzido?
André Galbe – Monitoramos por meio da curva de crescimento e sinais da maturação sexual. A curva de crescimento é um gráfico do acompanhamento do aumento de estatura dos atletas, onde observamos o momento do estirão de crescimento de cada garoto e quantos centímetros estão crescendo a cada trimestre, semestre e ano. Desta forma, é possível detectar indivíduos tardios e precoces. Vale lembrar que está é a fase de transição do pré-pubere para a puberdade e, neste momento, ocorrem muitas mudanças de forma abrupta no corpo e organismo dos atletas, como por exemplo a desordem motora causada pela mudança do centro de gravidade, aumento da força e do tamanho dos membros inferiores e superiores, o que muitas vezes afetam o rendimento técnico do atleta.
Todo ajuste é feito sempre em função de nunca prejudicar os atletas tardios e não vemos necessidades de acelerar o processo para os atletas mais maturados, a não ser que eles sejam promovidos de categoria de forma precoce.
O volume não é reduzido nestes casos, mas os treinos físicos complementares são individualizados. Vale lembrar que os treinos complementares são ajustes físicos feitos de forma coletiva e individual e que utilizamos para ativação, desenvolvimento e manutenção de componentes físicos dos jogadores. Atletas com necessidades maiores realizam exercícios ou sessões extras. Por exemplo, aqueles com histórico de lesão no tornozelo fazem atividades extras de treinamento neuroproprioceptivo, jogadores com encurtamento muscular fazem mais exercícios para aumento da amplitude do movimento, e assim por diante
Universidade do Futebol – O Corinthians possui estratégias de hidratação dos jogadores? Se sim, como é feito o monitoramento?
André Galbe – De um modo geral, colocamos à disposição água, isotônico e maltodextrina em todos os treinos e jogos. O atleta precisa ter consciência da importância da hidratação e isso é passado constantemente.
Em dias mais quentes e, principalmente nos jogos, damos uma maior ênfase no momento de hidratar.
Em competições curtas, como a Copa São Paulo de Futebol Júnior, os quartos são abastecidos com água e isotônico diariamente e os jogadores ficam à vontade para ingerir quando quiserem.
Universidade do Futebol – Como é feito o trabalho de integração entre a preparação física na base e profissional? O método de trabalho é alinhado?
André Galbe – São trabalhos diferentes e com objetivos diferentes. O nosso objetivo e compromisso é entregar ao futebol profissional atletas saudáveis, sem histórico de lesões graves e com cultura de treinamento.
A categoria sub-20 realiza periodicamente a mesma bateria de testes e avaliações do profissional e que são, inclusive, realizados no CT Joaquim Grava pelos profissionais de lá.
Universidade do Futebol – Como você vê o papel do preparador físico em um clube de futebol no futuro? Quais são as novas tendências aplicadas à modalidade e o que se pode esperar dessa área no futuro dentro do futebol?
André Galbe – Vejo com bons olhos. A disposição e disponibilidade do atleta nos treinos e, consequentemente nos jogos, dependem muito do estado físico e mental de cada um. Atletas mais saudáveis se encontram mais disponíveis.
A saúde do atleta reflete diretamente na sua capacidade de trabalhar com um nível elevado de exigência e de sempre estar recuperado.
Ter força muscular, corpo equilibrado e baixo percentual de gordura são sinais de bom estado físico e, muitas vezes, o treinamento somente por meio do jogo não atende estas necessidades.
O treinamento físico complementar, e não querendo ser o protagonista, é muito importante e existe no mundo todo.
Ter conhecimento sobre as ciências que envolvem o treinamento é essencial na elaboração do plano de trabalho para uma temporada.
Os jogadores passam a temporada toda próximos dos seus limites físicos e emocionais.
A consequência de anos de prática muitas vezes faz com que o atleta necessite de cuidados especiais com o físico, em função do desgaste provocado pelo tempo, lesões crônicas, desequilíbrios, encurtamentos e envelhecimento.
O controle de carga aumenta a qualidade da recuperação dos atletas, o que acaba sendo essencial pelo elevado número de jogos e é um grande desafio.
Aqui no Corinthians, um atleta que vai para departamento médico continua treinando quando a lesão permite para manter o condicionamento físico geral e o controle da composição corporal. Por exemplo: se a o atleta tem uma entorse de tornozelo, do local da lesão para cima ele treina tudo o que for possível enquanto está em tratamento e impedido de treinar no campo, assim acaba minimizando o destreinamento e fica mais rápido à disposição do técnico após sua liberação.
Tudo isto quem faz é o preparador físico e não é menos importante do que todas ações intensas que um jogador realiza durante o jogo.
Não precisamos nos apegar a aquela vitória no último minuto de jogo, pois isto pouco ou nada tem a ver com o treinamento físico. Temos que nos fazer importantes dentro daquilo que é essencial para o futebol atual.
O grande desafio do futebol moderno é render mais treinando menos e isto não se consegue de qualquer jeito. São pequenos detalhes que fazem diferença e todo profissional é importante.