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“Uma vírgula muda tudo” era o slogan de uma campanha publicitária alusiva ao centenário de fundação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

O material apresentava vários exemplos de como minúcias podem alterar radicalmente o significado de qualquer oração. Havia exemplos do quanto a pontuação podia atribuir valores (“23,4” ou “2,34”), instituir pausas (“Não, espere” ou “Não espere”) e até representar opiniões contraditórias (“Não queremos saber” ou “Não, queremos saber”).

Se o emprego da vírgula pode causar um estrago tão grande, usar uma palavra pressupõe responsabilidade ainda maior. Há muitos vocábulos cujas acepções são popularmente distorcidas. É o caso de “medíocre”, termo usado muitas vezes em contextos extremamente pejorativos, mas que significa “mediano”, “banal” ou “ordinário”.

A distorção semântica em torno da palavra “medíocre” veio à cabeça quando pululou na imprensa esportiva do Brasil o vocábulo “irrecuperável”.

O adjetivo foi usado pelo presidente do Santos Futebol Clube, Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro, em entrevista ao repórter Jamil Chade, de “O Estado de S. Paulo”. Em encontro na Suíça, o dirigente brasileiro foi interpelado pelo jornalista sobre a transferência do meia Paulo Henrique Ganso para o São Paulo.

“Vão ter de acompanhar com muito cuidado o jogador. Na minha opinião, o que ele tem é incurável”. Essa foi, ipsis litteris, a declaração de Luis Álvaro que o jornal paulistano publicou. Foi o suficiente para a condição física de Paulo Henrique Ganso ser dissecada em diferentes veículos de mídia.

Paulo Henrique Ganso, 23, chegou ao Santos em 2005, ainda nas categorias de base. No profissional, o meia tornou-se um dos alicerces do elenco que ergueu três taças do Campeonato Paulista (2010, 2011 e 2012), uma da Copa Kia do Brasil (2010) e uma da Copa Santander Libertadores (2011).

Canhoto, esguio e eficiente no passe, Ganso também chamou atenção por ter um estilo de jogo que atualmente é raro. Em poucos meses, passou a ser tratado como o favorito a vestir a camisa 10 da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014.

A trajetória do meia, contudo, nunca teve consistência. Assim como a ascensão foi extremamente rápida, o bom momento físico e técnico foi efêmero.

Ganso sofreu uma intervenção cirúrgica no joelho – a segunda do atleta, que já havia sido operado quando ainda estava nas categorias de base. Todo o histórico de lesões virou lenha na fogueira que Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro iniciou com a entrevista a “O Estado de S. Paulo”.

Via site oficial do Santos, o presidente emitiu nota para desmentir o teor da declaração. “Gostaria de esclarecer de forma veemente que em nenhum momento afirmei que a contusão do atleta Paulo Henrique Ganso é incurável”, diz o texto de Luis Álvaro.

Não, nunca afirmou. Isso é axiomático. Dizer que “O que ele tem é incurável” é muito diferente de dizer que “a lesão dele é incurável”. Sabe a história de “uma vírgula muda tudo”?

A discussão que não apareceu é que as duas histórias podem ser verdadeiras. Luis Álvaro pode ter dito que a situação de Ganso é incurável, mas pode ter feito referência a algo muito mais amplo do que a condição física.

A saída de Ganso do Santos foi precedida por intenso desgaste. O grupo econômico DIS, que detém um percentual dos direitos do atleta, tinha um problema com a diretoria do clube alvinegro. A indefinição sobre o futuro do camisa 10 acirrou essa discussão a ponto de criar um ambiente hostil para o jogador.

Dizer que o ambiente hostil é apenas um reflexo disso, porém, seria um reducionismo complicado. O problema de Paulo Henrique Ganso sempre foi maior do que o físico, o técnico ou o emocional.
O grande drama dele é a comparação constante entre o que ele é hoje e o que ele tem potencial para ser. A frustração advinda desse choque é que pode ser realmente incurável.

Analisar sutilezas como essas é um dos trabalhos mais importantes para qualquer jornalista. Geneton Moraes Neto disse uma vez que a regra básica para uma entrevista é fazer a pergunta: “Por que esse cara quer me enganar?”. Não são raros os textos que comparam entrevistas e danças.

Mais importante do que a declaração de Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro sobre Paulo Henrique Ganso é o recado implícito.

Há vários subtextos possíveis, que vão desde um questionamento sistêmico sobre o rendimento do meia (como o que este texto apresenta, aliás) até um simples subterfúgio para amenizar a perda no elenco do Santos.

Limitar o debate à condição física é ficar apenas em uma camada de algo multidimensional. Quem mais perde com isso é o consumidor da notícia.

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br

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