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O grego Costa-Gravas é um dos cineastas mais relevantes do século 20. Ele lançou em 1969 um longa-metragem chamado “Z”, obra que se desenvolve a partir de uma manifestação popular. Baseada no romance de Vassilis Vassilikos, a obra foi premiada com dois Oscar (melhor edição e melhor filme estrangeiro).

Antes de a ação se desenrolar, um aviso provocativo aparece na tela: “Qualquer semelhança com pessoas ou lugares realmente existentes não é coincidência. É intencional”. O filme foi proibido no Brasil durante o período da ditadura militar.

A história central da obra é o assassinato de um deputado liberal. O romance de Vassilikos tem como ponto de partida a morte de Grigoris Lambrakis, que ocorreu nos anos 1960.

Tente esquecer tudo isso quando vir o filme. Tente deixar de lado a profundidade da trama política, a direção bem conduzida e o ritmo extremamente equilibrado do filme. Dê mais atenção aos diálogos, como os discursos de autoridades logo na primeira cena. Costa-Gravas podia ter escrito tudo isso ontem.

Em 1993, como bem lembrou João Pereira Coutinho, colunista da “Folha de S.Paulo”, Samuel Huntington publicou na revista “Foreign Affairs” um artigo intitulado “The clash of civilizations” (algo como “o embate de civilizaçãoes”, em tradução livre).

No texto, Huntington diz que é impossível imaginar a repetição de guerras econômicas ou políticas, como as que aconteceram no século passado. Findaram as lutas clássicas entre Estados.

No entanto, isso não quer dizer que os conflitos tenham cessado. Ele ainda identifica enorme tensão formada pelo multiculturalismo. Huntington podia ter escrito isso ontem.

Costa-Gravas e Huntington não escreveram nada sobre o Brasil. Tampouco tentaram deslindar o atual momento do país sul-americano. Com distanciamento histórico e geográfico, contudo, as obras de ambos servem muito para analisar o que tem acontecido aqui.

No último sábado, 13 capitais do Brasil receberam um protesto chamado “Não vai ter Copa”. A manifestação acabou em tumulto em muitas delas, e São Paulo foi o foco mais conturbado. Houve mais de cem detidos, e um estoquista de 22 anos foi baleado por policiais militares.

Os policiais militares alegaram legítima defesa. Disseram que Fabrício Proteus Nunes Fonseca Mendonça Chaves tinha material explosivo na mochila, portava um estilete e tentou golpear um oficial.

A tese da defesa do garoto é dicotômica. Segundo Daniel Biral, advogado que tem cuidado do caso, Chaves portava um estilete porque usava no trabalho. O jurista sustenta que o estoquista foi abordado por policiais, ficou com medo, correu e foi alvejado.

Ainda é cedo para teorizar sobre a história. Faltam elementos que indiquem qual versão é real (ou qual se aproxima mais da verdade). Entretanto, a história do manifestante baleado por policiais militares já serve para mostrar o quanto a guerra cultural e a repressão descabida são problemas latentes no Brasil atual.

Afinal, se a Copa do Mundo de 2014 já conseguiu produzir algo de relevante no país, definitivamente é isso: antes mesmo de ser realizado, o evento mostrou o quanto ainda somos imberbes como sociedade e o quanto precisamos evoluir como palco de massas.

Porque tem sido assim em todas as manifestações populares: elas têm servido, antes de tudo, para mostrar o quanto nós precisamos adquirir cultura de discussão (e aí a generalização é pertinente).

Enquanto não discutirmos ideias e não estivermos prontos para contrapor argumentos, sempre correremos riscos de explosões de violência. Isso vale para todos os lados.

Enquanto acharmos que o caminho correto para qualquer discussão é destratar o argumentador e diminuir os méritos de quem diz, perderemos tempo que podia ser gasto com questões realmente relevantes.

Policiais militares não são treinados para discutir. São treinados para cumprir e dar ordens. São raros os que sabem conversar e improvisar quando a autoridade conferida pela farda não é suficiente para impor respeito.

Manifestantes não são treinados para discutir. A tensão dos protestos também tem a ver com gente que extrapola e que não sabe debater ideias. Não existem apenas culpados ou apenas mocinhos.

Tudo isso tem importância para o esporte em diferentes âmbitos. A começar pela organização de eventos – não conseguiremos fazer sequer jogos locais enquanto não estivermos preparados para discutir e buscar soluções em vez de impor autoridade.

O curioso, porém, é ver que essa cultura se alastra até para o que acontece dentro das quatro linhas. Impregnados por essa cultura militarizada e sem contestação, formamos atletas que se preocupam apenas com o cumprimento de ordens e dão pouco ou nenhum espaço para o entendimento do jogo.

Esporte é transgressão, improviso e arte. Mas esses elementos só podem ser combinados por quem tem domínio do jogo, ainda que esse domínio seja totalmente empírico. É o que algumas pessoas chamam de “antevisão”.

Somos um país jovem e temos uma sociedade ainda mais nova. Ainda temos muitos problemas decorrentes disso, e obras antigas mostram que essa mesma ciclotimia atingiu outros países em momentos não tão distantes.

A questão é, e isso vale para todas as searas, o quanto estamos dispostos a mudar. Se continuarmos achando que a formação militarizada é o caminho e que não precisamos aprender a contestar, vamos seguir parados no tempo. No campo e – principalmente – fora dele.

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