O JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias) é publicação que não dispenso. E fico “encharcado de sonho” após a sua leitura, como o chale velho da D, Leocádia do Húmus de Raúl Brandão. Filho de uma sociedade industrial, ou moderna, baseada em certezas, no progresso linear e no determinismo científico, tento adaptar-me à pós-modernidade, ambígua pela incerteza, insólita pela descontinuidade, inenarrável pela complexidade. E o sonho volta a ser uma necessidade. Agnes Heller, socióloga húngara e nome primeiro da Escola de Budapeste, publicou (creio que em 1977) On the New Adventures of the Dialectic (Acerca das Novas Aventuras da Dialética), um ensaio que alcançou ampla repercussão entre a juventude e onde se realça que todos os seres vivos, incluindo as plantas e os animais, sentem necessidades do tipo existencial, tais como o alimento, o repouso, a reprodução. Na espécie humana, porém, para além destas, palpitam outras qualitativamente diversas, que Heller considera as fundamentais, ou radicais, tais como a amizade, o lazer, o amor, o sonho. Entendo agora porque me delicia tanto a leitura do JL: o que é a literatura senão uma superior manifestação do sonho? E não poderá dizer-se o mesmo do futebol-espetáculo, interpretado por jogadores da estirpe de um Ronaldo, ou de um Messi, ou de um Iniesta, ou de um Neymar?
O jogo e os jogos têm merecido estudos, os mais diversos, da antropologia, da psicologia, da sociologia, da filosofia. No que à relação entre jogo(s) e literatura diz respeito, ela desponta normalmente em enunciados do tipo “o jogo literário”, “o jogo do escritor”, “a poesia como jogo”, etc. No entanto, encontramos textos em que o jogo é o tema principal. O jogador de Dostoievski é um exemplo, entre outros.
No JL, de 11 a 24 de Junho de 2014, não deixei, em primeiro lugar, de ver o livro que Miguel Real, em instantes luminosos de crítica literária, seleciona, A Última Noite em Lisboa, de Sérgio Luís de Carvalho. Depois, vi e revi, através do JL, algumas frases de escritores célebres, que se encontram expostas, no Museu de Língua Portuguesa, em São Paulo, acerca do futebol. E começo pela doce, pela dulcíssima, Clarice Lispector: “Não, não imagine que vou dizer que o futebol é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte comno gladiadores. E eu – provavelmente coitada de novo – rinha a impressão que a luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta potque um juia vigiava, nãlo deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria se jogasse! Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol,. Jamais me ocorreria jogar. Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem uma beleza própria dos movimentos, que não precisa de comparações”.
Luís Fernando Veríssimo faz eco do que os antropólogos e psicólogos dizem, há muito tempo: “Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exatamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria largar a paixão e deixai para trás essas criancices: a devoção a um clube e às suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo ou a fúria assassina quando o time perde, a exultação guerreira com a vitória. Você pode racionalizar a paixão, e fazer teses sobre a bola, e observações sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passa, mas é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe um guri pulando na arquibancada”.
O Mário Vargas Llosa, um dos grandes senhores da literatura mundial, esclarece: “O futebol é o ideal de uma sociedade perfeita: poucas regras claras, simples, que garantem a liberdade e a igualdade dentro de campo, com a garantia do espaço para a competência individual”. Augusto Abelaira não esconde a sua paixão pelo futebol: “Insisto. Se o futebol estivesse por inventar, seria eu a inventá-lo. E até inventaria a televisão, para o ver calmamente em casa”. Jacques Derrida, num ensaio que tem sobre Maurice Blanchot distingue entre o testemunho e o simples relato, que invoca a conhecida oposição, em Lacan, entre saber e verdade. O relator diz o que se passou, testemunhar implica presença e defesa da verdade. Lídia Jorge é da ordem do simples relato: “Acho graça ao jogo, só que ele não pode engolir o nosso espaço cívico, o nosso interesse pela política, pela sociedade, pela leitura. Há uma euforia disparatada, promove-se um entusiasmo desbragado”. Jorge Jesus é da ordem do testemunho, quando sustenta: “O futebol é a minha vida. Se o futebol não existisse, não seria a mesma pessoa e, possivelmente, até seria mais infeliz. É mesmo no futebol que me realizo” . José Maria Pedroto, a sorrir, e de cigarro entre os dedos, disse-me um dia: “O futebol é como o tabaco. Uma pessoa habitua-se e não consegue passar sem ele”. Mas, sem ele, também não conseguem passar os adeptos do futebol, os “torcedores”, como dizem os brasileiros. O futebol está na moda.
A recepção, que tocou a loucura, ao Cristiano Ronaldo, por parte do público feminino de Campinas vem dizer-nos que até há um elemento erótico, no desporto atual. No final do século XVI, o termo sport chegou a utilizar-se com o sentido de “fazer amor”. Afinal, para as meninas da cidade de Campinas e diante do Cristiano Ronaldo, o que está em jogo? Não é desporto tão-só. Nem arte unicamente – a “oitava arte”, como já lhe chamam. É que o futebol, como o desporto (lá volto eu a repetir-me) não se reduz a uma Atividade Física. Verdadeiramente, é uma Atividade Humana. O amplo leque de escritores que por ele se apaixonam assim o provam, assim o dizem, assim o cantam…