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Não, não vou ocupar-me do Ser e Tempo de Martin Heidegger (1889-1976). Nem, para tanto, reconheço em mim competência tamanha. Mas parece-me filosófica a questão: para saber de desporto (e portanto de futebol) o que é preciso saber? Qual o saber radical (ou o decisivo e fundamental) onde assenta o conhecimento do futebol? Uma pergunta ainda, com a mesma intenção: qual a essência do futebol? Sem o dizer, o engenheiro Fernando Santos, atual treinador da seleção portuguesa de futebol, ensinou-nos, com inflexível e austera firmeza: é o ser humano, é o “agente do futebol”, designadamente o praticante. E, por isso, foi a este nível que se centraram as suas preocupações, logo que o nomearam selecionador. E o Ricardo Carvalho e o Tiago e o Danny e o Cédric e o William Carvalho integraram o “onze” em que mostrou mais acreditar. O Ricardo Quaresma, um dos melhores jogadores portugueses, também foi convocado e também jogou. No próprio dia do Dinamarca-Portugal, Fernando Santos dizia ao jornal A Bola: “Quem decide no campo são os jogadores, eu estou cá fora”. De facto, para quem viu o jogo (eu vi pela televisão) ficou demonstrado que a tática quatro-quatro-dois-losango (que por vezes se transformou em quatro-três-três) resultou em plenitude, mas foi a classe de Ricardo Carvalho e de Ricardo Quaresma e o gênio de Cristiano Ronaldo (e a honestidade de todos eles) a “causa das causas” da vitória memorável, em Copenhague. Venho assinalando, há um bom par de anos já, que não há remates, há homens (e mulheres) que rematam; não há defesas, há homens (e mulheres) que defendem; não há fintas, há homens (e mulheres) que fintam – se eu não compreender antes os homens (e as mulheres) que rematam e defendem e fintam, não entenderei nunca nem os remates, nem as defesas, nem as fintas. O Cristiano Ronaldo, após o Dinamarca-Portugal, sem pormenores engenhosos, desassombradamente afirmou: “Já tinha saudades de jogar com o Ricardo Quaresma”. E sorridente acrescentou: “É que eu já sei como ele centra, eu sabia o percurso da bola e assim fiz o golo. Eu conheço-o bem”.

O desporto não é apenas uma teoria, nem tão-só uma doutrina – o desporto é uma vida! Uma equipa, como uma família, mostra-se nos mais pequenos trechos de fraterna amizade, entre os jogadores, e no respeito pelas ordens do treinador que se aceita como conselheiro ou guia. Uma equipa, ou se movimenta, estrutura, enobrece, como uma família, ou o 4x3x3, ou o 4x4x2, ou o 3x5x2, ou o 4x2x3x1, surgem acorrentados a erros e fragilidades sem conta. Juan Mata, jogador do Manchester United, ao El País, de 2014/10/20, assegurou com palavras solenes: “Van Gaal es honesto. Es más importante ser una buena persona que un buen técnico”. Ao Juan Mata apresentam-no os jornais como um rapaz rebelde e livre, pagando, com frequência, as consequências das suas atitudes, do seu desprezo pelas fórmulas feitas, da sua falta de respeito pelas consagrações indevidas. Mas, segundo o jornalista que o entrevistou, é um leitor habitual de bons livros. Talvez, por isso, e instruído pela lição diária dos factos, a sua plena crença na necessidade de o treinador ser pessoa de admirável lucidez e honestidade… antes do mais! O desporto de alta competição tende, hoje, a reduzir-se à racionalidade técnica e tática, à rentabilidade econômica (o futebol é um negócio) e a uma retórica de salivoso e anacrônico clubismo. Ora, e a dignidade incontornável do homem, como pessoa, presente em cada um dos elementos que constituem um departamento de futebol? E não é por aqui que deve começar o treino do futebolista de alta competição? Para que serve a ética no treino e na competição? Concorre ela a uma performance mais plena? O Juan Mata na mesma entrevista não esconde a admiração que sente pelo treinador Van Gaal: “ Gosta muito de falar connosco e perguntar-nos que opinião temos dos exercícios que fazemos nos treinos. Por vezes, fala de Guardiola e dos conselhos que lhe dava. Van Gaal tem prazer em ouvir os jogadores, principalmente quando eles procuram soluções que podem beneficiar o grupo”.

A reflexão filosófica acordou tarde para o Desporto, que era uma Atividade Física e quanto mais física mais desatinada. Após esta melancólica conclusão, a Filosofia não poderia ocupar-se do Desporto. Até que (e agora, desde os gregos, dou um salto de séculos) o Desporto passou a estudar-se de um modo unificado onde entravam dialeticamente, integrando a mesma totalidade, aspetos epistemológicos, éticos, estéticos, tecnocientíficos, sociais, políticos, culturais. E então a Filosofia descobriu que o Desporto era uma Atividade, mais do que Física, Humana e sentiu que não podia ficar indiferente à humanidade que o Desporto é. E temas como ciência, consciência, competição, motricidade, solidariedade, liberdade, utopia, desejo são problemas filosóficos porque são desportivos e são problemas desportivos porque são filosóficos. E na escola hegelo-marxista, na fenomenologia, em Nietzsche, em Ortega y Gasset, em Wittgenstein, em Huizinga, em Arnold Gehlen, em Adorno, em Marcuse, em Hannah Arendt, em Habermas encontramos juízos esclarecedores acerca do corpo, do jogo, do desporto, do espetáculo, da competição. E do discurso, da comunicação. N’A Condição Humana (Relógio d’Água, Lisboa, 2001), Hannah Arendt observa: “Nenhuma outra atividade humana precisa tanto do discurso como a ação” (p. 41). O ser do Desporto é o Homem! Numa competição ou num treino, quando se pergunta: o que aconteceu? É pelo Homem que se pergunta…

O que venho de escrever, nas suas linhas essenciais o engenheiro Fernando Santos conhece, assim como os que têm a paciência de ler-me. Entre as dezenas de jogadores profissionais de futebol, que já conheci, mesmo os de mais larga audiência, nenhum me mostrou desagrado, pelo seu atual (ou antigo) treinador, por razões de ordem tática. Os fatores decisivos da sua antipatia residiam na prepotência, na canhestra comunicação, na teimosia, na incapacidade de liderar e organizar. Numa grande equipa de futebol, hoje, liderança, ética e humanismo convergem. A crise, portanto, não é normalmente de ordem tática. Por isso, eu confio no engenheiro Fernando Santos, como treinador e líder da seleção portuguesa. No meu modesto entender deverá nascer, no futebol, uma perspetiva paradigmática nova, onde o que o define não tem apenas e só uma natureza científica. A transcendência (a superação) é o sentido da vida e portanto do desporto. E no ato da transcendência não há ciência tão-só, há vontade e esperança e fé – há a convicção profunda de que o Homem e o Desporto são tarefas a realizar! Só quando o Futebol for um modo de desfatalizar a História, o futebol poderá desenvolver-se, numa ordem imprevisível e nova. Por isso, repito, eu confio no
engenheiro Fernando Santos, como treinador e líder seleção portuguesa de futebol.  

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