Já o Sporting tinha sido excluído da Champions League, por duas derrotas descomunais e o Benfica, ainda na fase de grupos, sofrera igual tratamento porque mostrou, sem margem para dúvidas, que se encontrava corroído por uma espécie de cancro de que não se conhece a origem – e eis que por causa de um erro do árbitro Lucílio Batista, na final da Taça da Liga, o mundo lisboeta do futebol rompeu em sanhudos debates, sustentando os sportinguistas que o árbitro os “roubara” propositadamente e os benfiquistas que a Taça lhes coube, em clara honradez de processos.
Entretanto, o F.C. Porto assiste do pódio de campeão, piscando um olho discreto e vencedor, à conversa azeda entre os dois principais clubes da capital, que parecem viver em clima de marasmo, derrotismo, de verdadeira confusão mental.
Com efeito, o que é a Taça da Liga? No âmbito europeu – muito pouco! No âmbito nacional, é uma prova que serve, à maravilha, para o Sporting e o Benfica esconderem a sua gritante incapacidade à conquista do Nacional de Futebol e para se afirmarem no futebol europeu.
Não ponho em causa as poucas e lúcidas páginas que justificam a Taça da Liga. O que está aí, à vista de toda a gente, é que os principais clubes, ou olham para ela com um olhar lateral e sem interesse, ou fazem o que os actuais Benfica e Sporting (e digo actuais porque já os conheci, quando escreveram páginas imorredoiras, na história do nosso futebol) parecem ser especialistas: legarem à posteridade um retrato onde se surpreendem os tiques e os ridículos de uma macrocefalia que se fez acéfala.
E, no entanto, há no Benfica e no Sporting funcionários e técnicos (incluindo os de saúde) de eloquente competência e honestidade. Uma boa parte deles conheço-os, há largos anos. Alguns muito me ensinaram, quando foram meus alunos. O que se passa então, no futebol sénior destes clubes, que se encontra confuso e envolto em sucessivos falhanços, mascarados por longas disputas e cansativas parlengas?
Há poucos dias, um daqueles técnicos, que não teme cotejo com o que de melhor apresenta, na sua área, o futebol inglês, ou o italiano, ou o espanhol, confessava-me, derramando uma sentida tristeza: “Professor, no campo da avaliação dos índices de fadiga e do controlo de treino e da recuperação física e da prevenção das lesões etc. e até no da observação e análise de jogo, estamos ao nível do que melhor se faz na Europa e por isso lhe pergunto: o que nos falta, no seu entender, para sermos uma equipa vencedora?”. Tinha o rosto carregado de ansiedade e prosseguiu: “Lembro-me, com frequência, do que nos ensinava nas aulas e muitas vezes dou comigo a repetir: é preciso saber mais do que futebol, para se saber de futebol. Professor, estou rodeado de gente que sabe de futebol e a prestação da equipa, que tem jogadores de classe, é um rosário de insucessos”.
Sempre tive receio de falar do que nunca fiz. Se bem que razoavelmente informado, designadamente no que à filosofia das ciências diz respeito, sou um modestíssimo filósofo. No entanto, não posso esconder que levo uma vida de convívio fraterno com treinadores desportivos de excepcional relevo, como o Mário Moniz Pereira, o José Maria Pedroto, o Mário Wilson, o José Mourinho. Leio, atentamente, os livros do Jorge Castelo, um teórico sem par no futebol europeu, do Jorge Araújo, que realiza um incomparável (entre nós) trabalho interdisciplinar desporto-gestão, do José Neto que não se cansa de apontar-me os pontos mais salientes da vasta problemática do futebol. Escuto o que o Jorge Jesus me relata do seu dia-a-dia de treinador perspicaz e diligente. Acompanho, mesmo com entusiasmo, o futebol português e o internacional. Não me escusei, por tudo isto, à resposta que o meu interlocutor me solicitava:
Se todos sabem muito de futebol e a equipa, mesmo com jogadores de grande valia técnica, não é eficiente, a organização, que transforma um conjunto em sistema, não funciona.
Repito: é a organização que une e transforma os elementos em sistema. Mas esta união é mais qualitativa do que quantitativa. Um conjunto de bananas não faz um sistema. O conjunto é sistema, quando é corpo e alma, ou seja, quando o jogador corre e remata e defende e luta… porque acredita! Quando o seu desempenho, a sua atitude ganhadora resultam de uma totalidade que não se desmorona porque objectivos bem nítidos e fundamentados a informam. Um dos mais notáveis biólogos de todos os tempos pode ser ouvido, neste passo: “o que define uma máquina são as relações (…). A organização de uma máquina implica matéria, mas esta matéria não entra enquanto tal na definição de máquina” (Francisco Varela, Autonomie et Connaissance. Essai sur le vivant, Seuil, Paris, 1992, p. 128).
Agora, meu querido amigo, sou eu a perguntar-lhe: todos os jogadores do seu clube acreditam no treinador e naquilo que ele determina ou propõe?… Redarguiu, sem dificuldade: “Nem todos”. E eu muito lépido: assim, as relações estão inquinadas e a máquina funciona mal, inevitavelmente! Os jogadores até podem ser muito profissionais, mas só se é vencedor quando se é mais do que profissional, quando se é, digamos a palavra: crente! Resumindo: quando, sem rejeitá-lo, se ultrapassa o próprio raciocínio lógico e dedutivo.
Na alta competição, o futebolista é, em todos os momentos, interpelado, convocado a dar uma resposta complexa, total às solicitações do jogo e da própria vida. A responsabilidade do futebolista (como do praticante de qualquer outra modalidade, em alta competição) é humana, bem antes de ser futebolística.
“Que hei-de eu fazer, professor?”. E a interrogação ficou a ressoar, expectante, na boca do meu antigo aluno. Respondi-lhe: leia os dois últimos livros de Edgar Morin, publicados pela Editora Piaget. Leia, sem receio, criticamente. O que embrutece não é a falta de instrução, mas a convicção da inferioridade da nossa inteligência. São duas obras de reduzida dimensão e, depois, voltamos a falar. A responsabilidade social do futebol reside aqui: em dizer ao mundo em que vivemos que nada se resolve só com especialistas, com a neutralidade do positivismo, mas com peritos que o são porque também conhecem o todo.
Como bem o mostrou Michel Serres, no seu livro La traduction. Hermes III (Minuit, Paris, pp. 81-83), o perito, à maneira antiga (e há uma praga desta gente, nas altas instâncias do futebol) tem um discurso parcial, limitado, reduzido a uma única problemática. Como se tudo não estivesse em rede com tudo! Ocorre-me o Imbelloni, ao tempo treinador do Braga, a sustentar que no futebol tudo estava inventado. Desconhecia o antigo jogador argentino que, numa compreensão complexa da realidade, a inércia é impossível, dado que tudo é processo, tudo se encontra em devir histórico. No desporto, a competição é tentativa de superação – é movimento! E o que é o progresso senão mudança contínua?
As crinas brancas das ondas emergiam à superfície da paisagem em que o nosso olhar se perdia. Almoçávamos tranquilamente, na Costa da Caparica…
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal
Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br
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