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Há muito escutamos e participamos do aparentemente interminável debate do que vale mais: se a experiência do saber fazer ou se o conhecimento de como fazer. A superficialidade de grande parte das pessoas do meio futebolístico faz com que as opiniões flutuem de acordo com a maré, ora como uma onda mais forte para um lado, ora como ondas no sentido oposto.

Discutimos sobre tecnologia, gestão, treinamento, práticas, formação, enfim, uma série de temas, os quais, quase sempre, retornam ao assunto da experiência de campo, seja como mocinha ou vilã.

“O cara foi jogador, por isso, conhece os atalhos e a linguagem do boleiro”, ou pela outra onda, “o cara foi apenas jogador, não estudou, e não tem profundidade naquilo que faz”, não há planejamento ou sobra malicia prática, eis o contexto.

Para refletirmos sobre a temática, permito abster-me de opinar, para refletir, junto com os amigos, sobre as palavras de Voltaire, num breve conto intitulado “A Aventura da Memória”.

Voltaire faz uma reflexão acerca de teorias que criticam ou defendem a ideia de que nossos conhecimentos decorrem da experiência, da memória. Com a palavra o filósofo:

“O gênero humano pensante […] acreditara por muito tempo […] que nós não tínhamos ideias senão por intermédio dos sentidos, e que a memória era o único instrumento com o qual podíamos reunir duas ideias e duas palavras. […]

Este dogma, no qual se fundam todos os nossos conhecimentos, foi universalmente aceito, e até mesmo a Nonsobre o adotou, embora se tratasse de uma verdade.

Algum tempo depois surgiu um argumentador[…], o qual se pôs a argumentar contra os cinco sentidos e contra a memória. E disse ao reduzido grupo do gênero humano pensante:

- Até agora estivestes enganados, porque os vossos sentidos são inúteis, porque as ideias são inatas em vós, antes de que qualquer dos vossos sentidos possa ter operado; porque já tínheis todas as noções necessárias quando viestes ao mundo; porque já sabíeis tudo sem nunca haver sentido nada; todas as vossas ideias, nascidas convosco, se achavam presentes em vossa inteligência, chamada alma, e sem auxílio da memória. Esta memória não serve para coisa alguma. 

A Nonsobre condenou tal proposição, não porque fosse ridícula, mas porque era nova. No entanto, quando, em seguida, um inglês começou a provar, e a provar longamente, que não havia ideias inatas, que nada era tão necessário como os cinco sentidos, que a memória muito servia para reter as coisas recebidas pelos cinco sentidos, a Nonsobre condenou suas próprias ideias, visto que eram, agora, as mesmas de um inglês. Ordenou por conseguinte ao gênero humano que acreditasse dali por diante nas ideias inatas, e perdesse toda e qualquer crença nos cinco sentidos e na memória.

O gênero humano, em vez de obedecer, pôs-se a rir da Nonsobre, a qual entrou em tamanha fúria, que quis mandar queimar um filósofo. Pois dissera esse filósofo que era impossível formar ideia completa de um queijo sem o ter visto e comido; e chegou o celerado a afirmar que os homens e mulheres jamais poderiam fazer trabalhos de tapeçaria se não tivessem agulhas e dedos para as enfiar.

Os liolistas juntaram-se à Nonsobre pela primeira vez na vida; e os sejanistas, inimigos mortais dos liolistas, reuniram-se por um momento a estes. Chamaram em seu auxílio os antigos dicastéricos; e todos eles, antes de morrer, baniram unanimemente a memória e os cinco sentidos, e mais o autor que dissera bem dessa meia dúzia de coisas.

Um cavalo que estava presente ao julgamento estatuído por aqueles senhores, embora não pertencesse a mesma espécie e houvesse muita coisa que os diferenciava, tal como a estatura, a voz, as crinas e as orelhas, esse cavalo, dizia eu, que tanto possuía senso como sentidos, contou a história a Pégaso, na minha estrebaria, e Pégaso, com a sua ordinária vivacidade, foi repeti-la às Musas.

As Musas […] amavam ternamente a Memória, ou Mnemósine. […]. Irritou-as a ingratidão dos homens. Não satirizaram os antigos dicastéricos, os liolistas, os sejanistas e a Nonsobre, porque as sátiras não corrigem ninguém, irritam os tolos e os tornam ainda piores. Elas imaginaram um meio de esclarecê-los, punindo-os. Os homens haviam blasfemado contra a memória; as Musas lhes tiraram esse dom dos deuses, a fim de que aprendessem de uma vez por todas, a que se fica reduzido sem o seu auxílio.

Aconteceu, pois que, durante uma bela noite, todos os cérebros se obscureceram, de modo que no dia seguinte, de manhã, todos se acordaram sem a mínima lembrança do passado.[…]

Alguns senhores, encontrando um chapéu, serviram-se dele para certas necessidades que nem a memória, nem o bom senso justificavam. E senhoras empregaram para o mesmo uso as bacias de rosto. Os criados, esquecidos do contrato que haviam feito com os patrões, entraram no quarto dos mesmos, sem saber onde se achavam; mas, como o homem nasceu curioso, abriram todas as gavetas; e, como o homem ama naturalmente o brilho da prata e do ouro, sem ter para isso necessidade de memória, apanharam tudo o que estava a seu alcance. Os patrões quiseram bradar contra ladrão; mas, tendo-lhes saído do cérebro a ideia de ladrão, não pôde a palavra lhes chegar à língua. […]

Ao cabo de alguns dias, as Musas tiveram piedade dessa pobre raça. […] “Perdôo-vos, imbecis; mas lembrai-vos de que sem sentido não há memória e sem memória não há senso”.

Para interagir com o autor: fantato@universidadedofutebol.com.br

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