Há pouco mais de dois meses, fui gentilmente convidado pelo colega Bruno Madrid, do BOL, a falar sobre uma dessas discussões que, de alguma forma, repercute no nosso imaginário futebolístico: as diferenças entre aquilo tido como raiz contra aquilo que se chama de moderno.
No fim das contas, vejo equívocos importantes dos dois lados, com a diferença que os modernos mais extremistas parecem pretensiosos demais (pela negação do passado, inclusive). Todas as minhas respostas seguem abaixo, na íntegra. Neste caso, eu não preciso fazer comentários, uma vez que as respostas falam por si só. Apenas acho importante ler a última resposta com uma certa dose de sarcasmo.
Aliás, elas também aparecem, mais enxutas, nesta matéria, escrita pelo próprio Bruno, quando minhas visões foram confrontadas com as de alguns outros colegas do meio.
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O futebol brasileiro dos anos 90/2000 era melhor do que o futebol atual?
O futebol brasileiro dos anos 90/2000 tinha outros elementos. Por exemplo, vários dos nossos melhores jogadores passavam mais tempo no Brasil do que os jogadores desta geração. Entendo que existe uma certa tendência para a romantização do passado (não apenas no futebol), mas o romântico, para sê-lo, precisa superestimar as qualidades do que ama. Só que se pegarmos qualquer mesa-redonda daquela época e assistirmos hoje, provavelmente iremos comprovar que as discussões são, na raiz, as mesmas – mudam apenas os nomes! Ou seja, não se trata de melhor ou pior. São tempos diferentes.
A priorização das táticas e análises mais ajudou ou mais atrapalhou o futebol do país?
O Brasil deve ser um dos únicos lugares do mundo moderno que desconfia que o estudo é capaz de nos deixar mais burros. Pelo contrário, o esforço de vários colegas para se aprimorar, buscar outros olhares para o jogo, é super positivo. Você foi muito feliz citando o termo ‘táticas’, no plural. Existe uma tendência que confunde tática com esquemas táticos. Mas não, a tática é algo maior. O esquema está para a tática assim como um galho está para uma árvore, é uma derivação. Ou seja, mesmo a equipe mais descompromissada tem suas táticas, individuais e coletivas, e responde aos problemas do jogo, que também são táticos. Mas isso não nos impede, por exemplo, de refletir se não estamos tornando hiperobjetivo e metódico um jogo que é humano, logo, que vai para muito além da objetividade e do método. O futebol é mais poesia do que tese.
Depois da Copa de 2014, houve um sentimento de mudança geral, e técnicos como Felipão e Luxemburgo perderam espaço. Foi justo com eles? Há ‘desatualização’?
Aquele episódio causou enorme incredulidade, mas não sei se houve (e nem se deveria haver) uma perda de espaço. Um ciclo depois e Scolari, por exemplo, voltou simplesmente para a equipe mais abastada do futebol brasileiro – e foi campeão! Além disso, é importante considerarmos que o tempo e dinâmico, as ideias também. Mano Menezes, Cuca e Sampaoli, por exemplo, são treinadores da nova ou da velha geração? Não sei, sei que são bons treinadores. Não me agrada o termo ‘desatualização’, mas acho importante que o futebol brasileiro se habitue a conversar mais regularmente, trocar ideias com os bons profissionais daqui e do exterior, criar espaços de debate regulares e democráticos, sobre metodologias de treinamento, formação de atletas e treinadores, organização do calendário e etc. As melhores práticas internacionais nos mostram que esse é um caminho interessante.
Como você enxerga a nova geração de treinadores (Carille, Roger, Barbieri e cia)?
Novas gerações têm duas características: sempre vão surgir e sempre causarão incômodo. Fico imaginando, por exemplo, se não havia resistência a um treinador como Luxemburgo no início de carreira. Provavelmente, era ele o ‘moderno’ da época. É um processo que precisa ser encarado com mais naturalidade. Em linhas gerais, vejo duas coisas: em primeiro lugar, o sarrafo para os jovens treinadores é sempre mais alto, de modo que a tolerância é menor. Thiago Larghi e Barbieri, na minha opinião, são dois bons exemplos: entendo que ambos fizeram ótimos trabalhos no último ano, mas não foram suficientemente reconhecidos. Jardine mal assumiu o São Paulo e já estava sob a mira feroz de parte razoável dos mesmos colegas que pedem ‘renovação’. Por outro lado, esta nova geração, na qual eu me incluo, precisa ter claro que o jogo de futebol não existe para ser domesticado, que a ordem surge do caos. Se não refletirmos seriamente sobre o conhecimento que nos chega, se não sairmos do futebol para entendê-lo melhor, podemos caminhar para um jogo cada vez mais estéril, limitado.
Quais os motivos técnicos dos fracassos da seleção brasileira ultimamente?
Técnicos, nenhum. Jogadores de qualidade não nos faltam. Sobre os ‘fracassos’, vejo duas coisas: para o torcedor médio, qualquer resultado que não seja o título será tido como ‘fracasso’, o que denota um problema maior no ideário brasileiro sobre futebol do que no jogo jogado, em si. O outro ponto está no campo. Na Copa do Mundo da Rússia, por exemplo, julgo que a maioria das críticas feitas ao desempenho e ao treinador da seleção brasileira foram absolutamente secundárias. Foi um trabalho de muito bom nível, que enfrentou percalços importantes em um período sensível (lesões de Daniel Alves, Renato Augusto e Neymar, por exemplo), e que terminou vencido por outra excelente equipe, que poderia muito bem ter sido campeã.
E em relação aos fracos desempenhos dos clubes (só o Corinthians de time brasileiro venceu o Mundial nas últimas 12 edições)?
Não acho que o Mundial de Clubes deva ser parâmetro para o sucesso internacional. Com a disparidade econômica cada vez maior, e tendo em vista este novo modelo apresentado pela FIFA, os títulos mundiais serão uma utopia. O ponto positivo é que talvez passemos a relativizar a importância do torneio, potencialmente fortalecendo nossa competição continental. Este sim, é um ponto a ser discutido. Ano após ano, a Libertadores não tem sido terreno simples para os clubes brasileiros, inclusive para os mais saudáveis financeiramente. Vejo bons programas de formação de treinadores nos países vizinhos (especialmente da Argentina), e acho que isso já tem e terá reflexo ainda maior no nível de exigência das competições continentais ao longo do tempo. No ano que vem, um Defensa y Justicia, por exemplo, mais maduro e mantendo Sebastian Beccacece, pode ser um adversário muitíssimo incômodo, apesar dos poucos recursos econômicos.
Por que há cada vez mais menos “personagens” (como Serginho Chulapa, Edmundo, Romário, Viola, Dinei…) no nosso futebol?
Mas será que realmente há menos personagens? Deyverson não é um deles? Walter, talvez o Felipe Melo, Lisca e Renato, Fred, Douglas, Marquinhos (ex-Avaí), o próprio Neymar… Veja bem, não quero comparar os ‘personagens’ do ponto de vista qualitativo, mas penso de uma outra forma: será que a estrutura hiperprofissional e burocratizada do futebol moderno não acaba criando uma barreira que não deixa os atletas serem como são? Vários dos ‘personagens’ mais antigos, se jogassem hoje, iriam colecionar visitas ao STJD e cartões amarelos em comemorações de gols. Acho algo a ser considerado. Novamente, são tempos diferentes.
Qual sua opinião sobre Deyverson?
Tenho a impressão de que ele se sente incompreendido. Cada uma das polêmicas em que ele se envolve me parecem um pedido inconsciente de ajuda, um sinal de que há problemas a serem resolvidos (exatamente como nós temos os nossos, com a diferença de que ele é uma pessoa pública). Como não é possível separar o humano do jogador, é claro que isso tem repercussões dentro do campo. Mas me parece um sujeito gente boa.
Você se considera mais “raiz” ou mais “moderno?
Sendo muitíssimo sincero, acho essa discussão entediante, embora os rótulos sejam naturais para cada tempo. A questão central é que existem coisas, no futebol e fora dele, que vão para além do tempo e unem os extremos. Rinus Michels e Cruyff são sujeitos raiz ou modernos? Telê Santana e Jorge Valdano? Enfim, é por aí que deveria estar a nossa busca. Para não te deixar sem resposta, diria que me vejo um boleiro atemporal.