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Alex: houve quem dissesse não ser um jogador ‘intenso’. (Foto: Reprodução/UOL)

 
Dia desses, assistia ao primeiro jogo da semi-final da UEFA Champions League 2005/06, Arsenal x Villarreal – quando o Arsenal ainda jogava naquele belo estádio que era o Highbury. Como os amigos sabem, o Arsenal se classificaria com alguma crueldade, eliminando a equipe então treinada pelo chileno Manuel Pellegrini, hoje no West Ham.
Os primeiros minutos deste jogo são bastante assustadores do ponto de vista do tempo, uma alternância doentia da posse e pressings intermináveis, como dois pugilistas que não param de socar um ao outro. Aliás, me lembrou o jogo entre Juventus x Ajax, jogado neste ano, que citei outro dia. Nos dois casos, foi preciso que um ou mais jogadores, de pensamento diferente, trouxessem a pausa, baixassem o ritmo – ou o jogo engoliria a todos. No segundo caso, quem cortou o ritmo do jogo foi o goleiro Onana. Mas naquele Arsenal x Villarreal, quem baixava o ritmo era outro jogador: Juan Roman Riquelme.
O fato de ser Riquelme o jogador que fazia as síncopes, que cortava o tempo do jogo, me fez lembrar desta recente entrevista do espanhol Albert Puig, ex-diretor de formação do Barcelona, hoje assistente do New York City. Aqui, ele fez uma reflexão interessante sobre o atual estado do futebol argentino (também citando o brasileiro), especialmente do ponto de vista da formação, que cito em tradução livre: “Países como Argentina e Brasil têm um problema mercantilista. Eles tentam conseguir jogadores para vendê-los. Como forma de obter um benefício econômico, digamos. Os grandes talentos se destacam dos jovens, mas com físicos não tão desenvolvidos. Nos países vendedores, pretende-se que um garoto de 17 anos chegue rapidamente à Europa para obter um benefício econômico. Com um físico pequeno, eles deixam de lado os talentos e investem mais tempo em outros tipos de jogadores, mais fortes fisicamente, mas com menos talento. Isso acontece em muitos países. Os processos são avançados. A metodologia usada é vencer. Tudo está focado no desenvolvimento apressado. Se adicionarmos intensidade à vitória, estamos perdendo um pouco o Norte. Não sendo um grande conhecedor de como trabalhar na Argentina, não consigo refletir tão profundamente, mas acho que a chave é ter uma ideia muito clara, criar regras para proteger jovens jogadores e clubes e voltar ao que é o futebol. Não acredite que intensidade sem sentido esteja acima do ensino e da metodologia. O que eu acho é que na Argentina eles não devem copiar o europeu, mas defender seu próprio estilo. O jogador de futebol argentino possui um talento natural e isso deve ser aprimorado.”
O trecho em negrito é destaque meu. Lendo esta entrevista, quase que de imediato, me lembrei de uma outra passagem, das melhores que li neste ano, do ótimo Jorge Valdano, no seu livro Fútbol: El Juego Infinito, em que ele reflete sobre os males da normalização (ou mesmo do culto) a isso que nos acostumamos a chamar de intensidade. Em tradução livre, Valdano diz o seguinte: “Se o bom da intensidade é que apazigua as consciências, o ruim é que arruinou um dos conceitos que mais contribuíram para o bom futebol: a pausa. Para jogar bem, é preciso correr, é claro, mas também há que saber parar, pois isso está se enchendo de jogadores que, em sua ânsia de serem intensos, se movem a uma velocidade acima do que podem se permitir, o atentado à precisão é permanente. Se não há precisão, a jogada não tem continuidade e, se não houver pausa, não há surpresa. A precisão e a pausa sempre foram os componentes essenciais do grande jogo, e a intensidade vai contra os dois conceitos. Assim, vamos começar a colocar a palavra “intensidade” como sinônimo de eficácia. Seria como pensar que um relógio é bom porque está se movendo mais rápido do que os demais.”
Faço as citações por dois motivos. Primeiro, porque o tema da intensidade realmente me interessa muito, tanto do ponto do treinamento (volume/intensidade), como desse ponto de vista meio sagrado, que está presente no debate atual (e que carece de uma certa reflexão, sobre o que escrevi aqui e aqui). Depois, porque assim como assinalou o Albert Puig ali em cima, realmente parece haver uma relação muito próxima entre o culto à intensidade (ainda que não se saiba ao certo o que se chama de intensidade) e a carência da pausa no jogo jogado. Não por acaso, jogos num ritmo mais ‘baixo’, ou mesmo jogadores que eventualmente se criaram num ritmo mais ‘baixo’ (exemplo: Paulo Henrique Ganso), são imediatamente tidos como inaptos, inadequados para jogar o futebol que se joga hoje em dia. Ao mesmo tempo, vamos formando e nos acostumando (como treinadores e profissionais do futebol em geral) com levas e mais levas de jogadores que não cultivam a pausa, que não sabem o que é a pausa, que não sabem porque é preciso parar, que querem apenas a rapidez, o movimento, e que sabem se não se moverem, se não tiverem (ou se não mostrarem que tem) isso que se chama de intensidade, provavelmente serão escanteados.
Repare que meu ponto não é um discurso saudosista ou romantizado, não é disso que se trata. O que ponho em questão é em que medida nós estamos realmente refletindo sobre a normalização deste futebol (tido como) intenso, em que medida isso tem afetado os tipos de jogadores que formamos e formaremos no médio prazo e, especialmente, em que medida não estamos tentando apenas reproduzir um certo jeito de fazer futebol ao invés de analisar criticamente os conceitos que importamos e, então, adaptá-los à nossa cultura futebolística. Da minha parte, como treinador, não estou preocupado se a minha equipe é intensa. Estou preocupado se minha equipe joga bem futebol. Se jogar bem e for intensa, ótimo! Se for intensa e não jogar nada, algo está errado. No fim das contas, temo que nossos jogos, em maior número, sejam exatamente como aquele Arsenal x Villarreal – com a diferença que, talvez, não exista um jogador como Riquelme para brincar com o tempo do jogo.
Também não me surpreende que este discurso intenso apareça em um momento histórico em que tudo é tão tenso, que as pessoas estão tensas, com corpos sempre tensos, contraídos, que se esqueceram de como relaxar, sempre ansiosos e exaustos – mas intensos. Daí que um outro futebol, um futebol que misture contração e relaxamento (e não apenas contração e contração e contração) seja possível, desde que venha junto de um outro mundo, e que um outro mundo seja possível, desde que venha junto de novas almas, mais relaxadas e presentes.
Daí que o futebol seja prática da vida.
 

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