Assim que Ribamar fez o gol de empate, neste Flamengo x Vasco jogado outro dia, lembrei-me de imediato de uma chefe que tive, quando mais garoto, que me dizia que toda apresentação deve começar e deve terminar muito bem. De fato, foi o que aconteceu: o gol de Éverton Ribeiro (que, num lapso, imaginei inicialmente escrever ‘gol de Reinier’, o que não estaria de todo errado), logo no início, deu ao jogo um retrato bastante curioso, tanto do ponto de vista de quem fez o gol, como de quem sofreu. De fato, um jogo que começou e terminou bem, mas que não foi apenas início e fim, também foi meio – talvez por isso tenha sido o que foi.
Neste meio houve coisas que causaram certo espanto. Alguns colegas ficaram impressionados com a disposição (tática e anímica) defensiva do Vasco. Talvez porque acostumaram-se a ver uma defesa em 4-1-4-1, ainda que pouco se fale disso e ainda que o Vasco comumente oscile para o 4-4-2 – entre os jogos e dentro do próprio jogo. Neste clássico, como já sabemos, as funções defensivas dos dois atacantes, Marrony e Rossi, estavam diretamente ligadas ao seu papel em transição ofensiva, dado que as coisas não se separam. Ou talvez tenha causado certo espanto que Raul e Marcos Júnior ocupassem os corredores, o que já aconteceu em diversas outras oportunidades, mas talvez a surpresa seja herdeira dessa ideia, ainda cristalizada, da chamada ‘posição de origem’, como se a origem fosse começo mas também fosse um fim, e como se atletas não estivessem em movimento, percurso de vida. Como se a vida não fosse movimento constante e como se não pudéssemos sermos outros de nós mesmos e, por isso, sermos mais.
Porque é nisso, a meu ver, que esteve a potência desse jogo: os dois times foram outros de si mesmos. O Flamengo, porque (dizem os especialistas) não teria mantido o ‘nível de intensidade’, porque teria entrado mais ‘relaxado’, porque não fez isso, porque não fez aquilo. E o Vasco, por sua vez, porque teria tido ‘coragem’, porque igualou a disparidade técnica pela ‘coragem’ (vamos contando os clichês), porque superou-se a si mesmo, porque ‘jogou uma decisão’ e etc. Ou seja: o Flamengo esteve abaixo porque negou-se a si mesmo ao mesmo tempo que o Vasco esteve acima porque afirmou-se a si mesmo. Mas de que modalidade falamos? Porque se falamos de futebol, se falamos de um jogo coletivo de invasão e, especialmente, se pensamos o futebol a partir de uma certa complexidade, como esta mesma Universidade do Futebol defende há muito tempo, se pensamos o futebol a partir daquilo que é tecido junto, então precisamos dar um passo adiante e perceber que o rendimento de um e de outro reflete não apenas os problemas criados por um e por outro (por exemplo, a estratégia vascaína de explorar os corredores do Flamengo, às costas dos laterais, via transições ofensivas) mas especialmente as respostas dadas, por um e por outro, à sabida imprevisibilidade do jogo (por exemplo, as reações de ambas as equipes quando estiveram em desvantagem no placar, especialmente após as viradas). No fim das contas, são dois sistemas fechados que apenas compartilham o mesmo espaço ou dois sistemas abertos que se influenciam mutuamente? Se apostarmos no segundo caso, então caem metade dos clichês. No futebol, nada está posto: tudo é sentido. Mas é sentido coletivo, que tem menos a ver com as partes em si ou a soma das partes do que com o que está entre elas.
Foi por isso que eu escrevi uma vez, e reafirmo, que a inteligência está nas entrelinhas, é capacidade de ler entre as linhas, não apenas o que está visível. O que foi a jogada de Vitinho, no lance do quarto gol do Flamengo (sobre Bruno César, que havia recém-entrado naquela mesma segunda linha de quatro)? O que foi aquele drible de Yago Pikachu sobre Pablo Marí, no lance do pênalti? O que foi a construção coletiva do terceiro gol do Vasco (onde tive a leve impressão de um comportamento de linha de impedimento, que se perdeu quando Filipe Luís precisou acompanhar Rossi), assim como o que foi o terceiro gol do Flamengo, naquela belíssima transição com Bruno Henrique? A meu ver, todos traços de inteligência, individual e coletiva, todos traços de leitura do não-visto, de intuição, de curiosidade, todos traços de aposta. Afinal, não são apostas nossos modelos de jogo, nossas metodologias de treinamento, nossas relações com os outros, nossas ideias e nossas ações sobre o mundo da vida? Se admitirmos não saber tudo, então ainda são apostas.
E talvez aqui seja preciso um certo cuidado, porque às vezes as coisas de momento e a pressa do momento nos levam a crer que só existe uma aposta possível, que só existe uma inteligência, que a inteligência alheia é superior à nossa, que só existe um jeito de se jogar futebol, que o jogo só pode ser ‘ativo’, que o jogo nunca pode ser ‘reativo’, que é obrigatório ser ‘moderno’ (ou aparentar sê-lo), que não se pode olhar para trás, apenas para frente, como fazem os burros de carga, por exemplo. E aí não admira que às vezes neguemos nossa própria história, sabotemos a nós mesmos, que alguns debates sejam demasiado frouxos, o tratamento aos profissionais do futebol seja demasiado frouxo, o respeito seja demasiado frouxo, e nós tenhamos desaprendido a conviver com o diferente, a aceitar o diferente e a aceitar, ao mesmo tempo, este exímio trabalho de um treinador estrangeiro, que merecidamente afirmou-se e contribui conosco, assim como reconhecemos, sem fazer birra, os bons e ótimos trabalhos de treinadores nacionais, em todos os níveis, desde à iniciação até o rendimento. Que ser treinador está para muito além dos estereótipos, que vai para muito além da pseudomodernidade, que no futebol um mais um não são necessariamente dois, que bons trabalhos não se medem apenas pelo jogo, que treinadores não são treinadores apenas no jogo jogado, que não se toma a parte pelo todo, que ainda somos muito pequenos perto do jogo.
Como pequenos estamos perto do mundo e por isso vamos tateando, como fazem as crianças. Na aposta de que sim, é possível sermos outros de nós mesmos.
Como em uma noite clássica de futebol brasileiro.