Numa determinada sessão de treino, é significativamente difícil ter todos os atletas focados, comprometidos, cientes dos objetivos do treino na aplicação de um determinado jogo, entendendo suas regras, compreendendo sua lógica e agindo em função do seu cumprimento.
A ação pedagógica torna-se ainda mais trabalhosa se for considerado um ambiente em que pais, mídia, diversos treinadores e os próprios atletas afirmam que os jogadores de futebol já nascem prontos e também a convivência diária com jovens promissores que, certas vezes, tomam como exemplo alguns comportamentos de atletas pouco profissionais.
Porém, como mediador de um processo de evolução do “jogar” da equipe e como agente formador (e transformador), é função do treinador extrair o melhor de cada um de seus atletas e facilitar, por meio de sua liderança, abordagem, intervenção, comportamento e didática, o acesso ao “estado de jogo”, que é um grande parâmetro de qualidade do treino para quem ensina com Jogos.
O “estado de jogo”, definido pelo Dr. Alcides Scaglia, é caracterizado pela suspensão momentânea da realidade, onde há predomínio da subjetividade em detrimento da objetividade e que o seu ambiente (contexto) irá definir o que é ou não jogo.
No plano coletivo, ao iniciar um jogo da sessão de treinamento, é objetivo do treinador que, ao soar o apito inicial, toda a equipe rapidamente alcance referida condição. No entanto, quem já utiliza o jogo como metodologia de ensino perceberá que tal objetivo nem sempre é alcançado em todos os atletas.
Nem sempre é alcançado, pois no plano individual, cada elemento (jogador) do jogo encontra-se com foco, comprometimento e nível de compreensão da atividade distintos. Equalizar estes três fatores é a missão do treinador que pode ter início a partir dos questionamentos abaixo:
É possível entrar em “estado de jogo” preocupado com problemas particulares?
É possível entrar em “estado de jogo” insatisfeito com a perda da condição de titular?
É possível entrar em “estado de jogo” o atleta que não gosta de treinar?
É possível entrar em “estado de jogo” se, minutos antes da atividade, ao invés de discutir com a equipe o comportamento para o jogo em questão, a conversa referia-se ao lazer do último final de semana?
É possível entrar em “estado de jogo” se, minutos antes da atividade, ao invés de discutir com a equipe o comportamento para o jogo em questão, o atleta fica chutando bolas para o gol?
É possível entrar em “estado de jogo” se o treino aplicado encontra-se acima da zona proximal de desenvolvimento da equipe?
É possível entrar em “estado de jogo” se o treino aplicado encontra-se abaixo da zona proximal de desenvolvimento da equipe?
É possível entrar em “estado de jogo” aplicando exatamente o mesmo treinamento por um longo período de tempo?
É possível entrar em “estado de jogo” aplicando um treino com quantidade excessiva de regras sem devida progressão complexa?
É possível manter-se em “estado de jogo” se, a todo instante, o treinador para o treino para suas abordagens?
É possível manter-se em “estado de jogo” se o treinador deixa seguir o lance em que a bola saiu do campo de jogo somente alguns centímetros, afinal a atividade “é só pra treinar”?
É possível manter-se em “estado de jogo” quando a diferença de pontos no placar fica considerável?
Para cada questionamento, existe a melhor solução a ser encontrada pelo treinador. Para equipes diferentes, soluções diferentes. Para jogadores diferentes, respostas também diferentes. Logo, a “fórmula mágica” para o acesso ao “estado de jogo” está longe de ser encontrada em livros, teses ou dissertações.
Nestas fontes, porém, podem ser encontrados os embasamentos científicos para cada ação do treinador que contribuem para atingir o mais rápido possível o “estado de jogo” e sua manutenção até o apito final. O que fazer em cada questionamento parece simples, como podem ser lidos nos exemplos abaixo:
Atletas com problemas particulares (financeiros, familiares, etc.) necessitam de abordagens para que consigam esquecer, ao menos momentaneamente, o mundo real para alcançarem o mundo do jogo.
O foco na insatisfação, e não no jogo, com certeza atrapalhará o acesso ao “estado de jogo”.
Quem não gosta de treinar (jogar) não deve ser atleta de futebol, logo, não deve fazer parte de um elenco!
No treinamento, criar procedimentos em que a concentração esteja nas atividades do dia e que quaisquer ações/conversas paralelas não cabem, é missão do treinador.
Chutar bolas para o gol quando o treino vai iniciar é uma das atividades que não cabe.
A leitura minuciosa da equipe e jogadores permitirá ao treinador a criação de jogos adequados ao nível de desenvolvimento dos mesmos.
Com a evolução da equipe, os problemas se modificam, logo, os treinos também devem se modificar.
Demorar muito tempo para compreender as regras pode comprometer o tempo de entendimento do que fazer para ganhar o jogo.
Saber quando parar o jogo é indispensável para a manutenção da suspensão da realidade.
Se a bola saiu, mesmo que alguns centímetros, ela saiu. Não estrague o jogo!
Estabelecer a cultura de não aceitar derrotas, no mais simples jogo, faz com que o “estado de jogo” termine somente no apito final.
Agora, o COMO fazer, é o desafio de cada treinador a partir da já mencionadas liderança, abordagem, intervenção, comportamento e didática.
Então, no mundo ideal, em que todos os atletas estiverem em perfeito “estado de jogo”, que é o objetivo do treinador, os problemas estarão resolvidos?
É claro que não! O “estado de jogo” só faz sentido se as devidas respostas de cada jogador para cada problema do jogo estiverem alinhadas ao modelo de jogo da equipe e a ideia de jogo do treinador.
Mas isto é tema para outra coluna.
Para interagir com o autor: eduardo@149.28.100.147