Não sei se vocês sentiram o mesmo, mas há cinquenta dias, com a passagem de Diego Armando Maradona, sinto que não se passou apenas o jogador, ou não se passou apenas a pessoa: foi também a passagem de um certo tipo de futebol, de um certo tipo de sujeito e de uma certa narrativa que também não existem mais: foram implodidos e são quase que impossíveis no nosso tempo. Deixem-me falar um pouco melhor disso.
Uma das coisas que sempre me assustaram no Maradona foi precisamente a sua forma de relação com a bola. Não era uma relação normal – nem entre os próprios jogadores de elite. Era uma relação diferente, como se a bola fosse mais do que uma extensão do corpo, mas como se ela fosse o próprio corpo, como se não fosse possível separar o corpo, enquanto sujeito, da bola, enquanto objeto. A minha aposta é que isso só foi possível porque a relação entre Diego, Maradona e a bola era uma relação de amizade e era uma relação de amor. Os três, juntos, eram de fato uma coisa só. Fruto de um determinado tempo, em que a bola era uma amiga, era uma confidente e também uma companheira no preenchimento da vida de um garoto ou garota qualquer. Mas hoje em dia, vejam bem, a hiperprofissionalização e a guinada do futebol como negócio fazem com que a relação com a bola também se altere: logo cedo, de afetiva, vira uma relação profissional, uma espécie de sociedade. Por isso, não surpreende que os dois maiores gênios da história da bola sejam fruto de povos tão próximos, e de povos em que o afeto tem o seu lugar – às vezes não muito claro, mas sempre sentido, presente. Em tempos de renúncia do afeto, a bola vai mesmo virando mais sócia do que amiga.
Escrevi algo próximo disso outro dia, neste mesmo espaço, quando argumentei que bobinho e rondo são coisas diferentes: o bobinho é um fim nele mesmo, é coisa autotélica, enquanto que o rondo parece mais um meio, uma forma mais metódica de se chegar em algum outro lugar – é teleológico. E talvez esses rondos, que fazemos hoje como herança mais do sucesso do que do método de uma cultura particular, fossem não apenas desconfortáveis, como fossem até a antítese da natureza de um jogador como Diego. Maradona – e reparem que é meio traiçoeiro o que escrevo na sequência – talvez tenha sido mais jogador de bola do que de futebol.
Com a passagem de Maradona, também se vai, de alguma forma, um tipo muito específico disso que se entende como camisa dez. Talvez agora o dez esteja mais número do que marca, talvez o dez seja mais um número entre muitos, e talvez seja um número em busca de si: o significado do dez no campo é um algo meio indefinido, amorfo. Bom, sabemos que esse é um dos produtos do assim chamado futebol moderno: no início do ano passado, aliás, publiquei alguma coisa sobre isso, argumentando que um dos traços desse outro futebol é precisamente o derretimento de diversas fronteiras do campo – dentre elas as fronteiras entre posição e função.
Muito bem, só que o ponto em si não está bem no camisa dez, mas num lugar anterior: é bem verdade que o futebol é coletivo por natureza, mas me pergunto em que medida, nos próximos anos, nós não inverteremos a vara com tanta convicção a ponto de criminalizar a genialidade. Aquela mesma hiperprofissionalização de que falamos antes trouxe mais dinheiro – mas não por caridade. O gênio moderno precisa de um quê de burocracia, de um quê de processualidade, ele precisa desobedecer a si mesmo, cerceado pelos limites do coletivo. O problema: é esse o habitat dos gênios?
Neymar está dizendo que sim, pode ser, mas não sei o que os próximos anos nos dirão. O fato é que, na mesma esteira, com a passagem de Maradona talvez tenha deixado de existir o jogador de futebol e passou a subsistir apenas o atleta, sujeito profissional e responsável, obstinado e abnegado, disposto inclusive a abrir mão de si pela saúde esportiva da equipe mas, principalmente, chamado a abrir mão de si pela saúde financeira dos investidores. Mais uma vez: ok, são as regras do jogo moderno, mas me pergunto, ao mesmo tempo, para onde irão os gênios, os rebeldes, os subversivos, esses sujeitos dominados por um outro tipo de vida, perseguidos por outros passados, os sujeitos que não têm outra alternativa a não ser quem são. Esses, me parece, talvez sejam e serão lançados num novo lugar, que só pode ser fruto deste tempo (moderno) que talvez seja o lugar dos subgênios – ou alguma bizarrice do tipo – que ou são sujeitos feridos pelo sistema (como um Adriano, por exemplo) ou são tão subversivos a ponto de causarem, com o tempo, uma certa negação e mesmo uma redução de quem foram (como Ronaldinho). Mas reparem ainda que entramos num tempo dominado pela objetividade, pelo big data, pelo xG, pela crítica ao que se entende por intuitivo, ou empírico, ou afetivo – mas isso, minha gente, só pode dar num samba da razão pura, cheio de notas cuidadosaamente escolhidas, mas doidas para serem engolidas pelo real que elas próprias julgam apreender.
Com isso posto, quem criará, no futuro, um termo como ‘la mano de Diós’? Quem serão os gênios capazes de denunciar o nosso complexo de vira-latas? Quem batizará os nossos dinamites, nossos santos, nossos animais e as nossas forças da natureza com a bola nos pés? Com a perda da narrativa (como nos mostrou o Walter Benjamin, naquele brilhante texto sobre o narrador), perde-se também uma parte da experiência, da capacidade de dar sentido, perde-se um ponto de encontro fundamental do futebol com a vida que se vive – e eles não estão separados, afinal. O futebol, enquanto potência simbólica, vira perfumaria, o método vira maior do que o verso.
Veja bem, isso não significa uma negação da objetividade: significa dizer que ela, sozinha e manca, não dá conta, cai dura no chão. Assim como não podemos perder os nossos gênios da bola, dos quais falamos anteriormente, também não podemos perder nossos gênios narrativos, os nossos contadores de histórias, nossos proseadores, capazes de conversar – mas também de desconversar, quando preciso. Me lembro do Antero Greco, há muito tempo, no SportsCenter, da ESPN Brasil, dizendo que ‘é preciso ser sério sem ser sisudo’. Esse é, de fato, um desafio da nossa geração.
Da mesma forma, também é preciso sermos rigorosos, mas não moralistas. Livres de quaisquer juízos de valor, há um fato na mesa: aquele que talvez seja o gol mais subversivo da história do futebol (feito pelo próprio Maradona – de mão) é simplesmente impossível hoje em dia. Pois a passagem de Diego Maradona também é a passagem desse futebol ainda barroco, talvez visto como rude, mas também muito menos higiênico, muito menos limpo, um futebol ruidoso, de picardia e abertura – todos antíteses do moralismo. E de novo, não é necessariamente uma regressão, não é uma negação, é pura e simplesmente um sinal dos tempos. E o dever de quem vive num certo tempo é olhar para o seu tempo – além das superfícies – e pensar num outro tempo, de outra gente, um tempo eventualmente melhor, não exatamente livre de sofrimentos e carências, que são parte da nossa humanidade, mas um tempo pelo qual valha a pena se viver.
Afinal, a passagem de Diego Maradona é a passagem do tempo, um sinal inconfundível da passagem do tempo, e não deixa de ser um prefácio do tempo que está por vir, do futebol e da vida que nos esperam, nos quais o prazer e a dor estão em lugares muito diferentes do que já estiveram um dia. Ao mesmo tempo, lugares que não ocultam a nossa obrigação de buscar a santidade em vida, de buscar que alguma coisa em nós que seja sagrada – ainda que não sejam as mãos – e de viver e literalmente morrer pelo coração, onde moram as mais profundas das nossas forças vitais.