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Crédito imagem: Redes sociais/Marco Van Basten

Há poucos dias, o diário El País publicou uma entrevista bastante agradável com o holandês Marco van Basten, um dos grandes jogadores da sua geração e de todos os tempos, na qual ele comenta, com alguma nostalgia, sobre o futebol da sua época de jogador e particularmente da lesão que o levou à breve retirada dos gramados, ainda jovem. Na mesma entrevista, van Basten faz alguns comentários muito interessantes, embora não exatamente populares, sobre a sua visão do futebol que se pratica hoje em dia – mais especificamente sobre o papel da intuição nos jogadores de elite e sobre a real influência dos treinadores no desenvolvimento de atletas e na organização de equipes competitivas. Vamos conversar um pouco mais sobre isso.

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Aqueles que acompanham há mais tempo a produção do professor Alcides Scaglia, provavelmente já se depararam com uma observação, que já foi pauta de algumas das nossas conversas, na qual ele defende a importância de devolver o jogo ao jogador. Se levarmos em conta que pelo menos as duas últimas décadas trouxeram uma grande mudança na natureza do nosso entendimento sobre o futebol de elite – mudança talvez sintetizada numa transição mais consistente do centro do debate, dos talentos individuais para a organização coletiva -, não surpreende que hoje nos seja normal dar cada vez mais peso ao nosso ofício de treinadores e treinadoras. Deliberadamente ou não, fazemos isso de um modo que os jogadores passem, de fato, a serem vistos como secundários, dependentes das decisões dos treinadores. Sobre isso, van Basten disse uma coisa interessante, que cito em tradução livre:

“Hoje se uma equipe joga bem ou mal, atribuímos ao treinador. E realmente não sei qual é a influência do treinador. Pouco a pouco, temos esquecido do verdadeiro papel que têm os jogadores. O LIverpool é Klopp, o Madrid é Zidane, o City é Guardiola…”

No dia anterior à publicação deste texto, Abel Ferreira, treinador do Palmeiras, deu uma excelente entrevista ao Seleção Sportv. Num determinado momento, disse algo como ‘vocês atribuem tudo ao treinador’ – fazendo evidentemente uma observação à imprensa, mas não apenas – o que não deixa de ser verdade, nós de fato nos acostumamos a atribuir tudo ao treinador, e não deixa de sê-lo, também, por um efeito colateral daquele deslocamento de que falávamos acima: se, por um lado, é muito importante pensarmos o coletivo, por outro é razoável não tropeçarmos na curvatura da vara, de um modo que a capacidade decisória dos jogadores seja completamente escanteada, enquanto as decisões de treinadores e treinadoras passem a carregar um peso (inclusive emocional) cujas repercussões são altamente prejudiciais. Apenas como exemplo, um discurso que transfere todo o peso da performance ao treinador talvez seja patrocinador oficial da cultura de demissões em massa no Brasil.

Curiosamente, o próprio van Basten faz uma referência parecida, quando diz tacitamente que não sentia prazer trabalhando como treinador porque tinha muitas dificuldades em ter o real controle das situações, da mesma forma como não sabia (e diz ainda não saber) qual a real influência de um treinador no rendimento de uma equipe. Não deixa de ser um momento oportuno para se falar disso, porque embora estejamos cada vez mais animados por uma suposta evolução do pensamento e da prática do futebol, tenho a sensação de que estamos nos deixando levar por um tipo de discurso que não é exatamente moderno. Vejam, por exemplo, como tornou-se comum dizer que uma determinada equipe, que por algum motivo não alcança um nível ótimo de performance, é um ‘deserto de ideias’. Aquela transição do individual para o coletivo, cuja repercussão é um sobrepeso da real influência de um treinador, chegou a um ponto em que passamos a realmente acreditar que a performance, seja ela aguda ou crônica, é um reflexo único e exclusivo da qualidade das ideias que a antecedem – logo, se uma equipe não joga bem, só pode ser pobre de ideias.

Não deixa de ser um contrassenso bastante significativo, especialmente num momento em que dizemos valorizar tanto o pensamento sistêmico – e, justamente por isso, nos dizemos defensores do jogo. Ora, a premissa básica do jogo (e isso está em autores basilares da área, como Johan Huizinga e Roger Caillois) é a imprevisibilidade. O jogo tem regras e tem um espaço previamente definido, o jogo é uma espécie de suspensão temporária da realidade (razão pela qual podemos falar num estado de jogo – inclusive como parte importante de um ambiente de jogo e de um ambiente de aprendizagem) mas, junto disso tudo, o jogo é imprevisível. Não bastasse isso, o jogo de futebol ainda se constitui num ambiente de violentíssima complexidade, não apenas pelo alto número de atores envolvidos (e portanto de interações), mas por ser um jogo coletivo de invasão do campo adversário, por ser jogado com os pés ao invés das mãos, por ter uma regra absolutamente genial, como o impedimento, que pode restringir conscientemente o espaço efetivo de jogo – e são todos fatores que deveriam nos levar ao seguinte ponto: embora um determinado conjunto de ideias seja, de fato, importante na articulação da identidade de uma equipe, a complexidade do jogo é tão demasiadamente grande que não apenas não me parece possível atribuir às ideias a responsabilidade por um certo nível de performance (seria uma inferência reducionista de causa/consequência), como também me parece uma certa armadilha cognitiva sobre o real controle que exercemos sobre o jogo jogado e sobre a vida que se vive. Imaginem vocês, por exemplo, o que significa dizer que um sujeito em situação de miséria extrema está onde está por falta de ideias – ou porque ‘não se esforçou o suficiente’. Não parece muito adequado.

Por isso, não deixa de ser importante considerar a fala do van Basten sobre não se sentir no controle – porque o controle é de fato mais uma sensação do que qualquer outra coisa. Aqueles de nós que trabalham com metodologias baseadas em jogos, sejam eles grandes ou pequenos, conceituais ou contextuais, sabem perfeitamente que o jogo, ainda que planejado, não é um experimento meticulosamente controlável. Pelo contrário, nós até podemos definir uma série de condições iniciais, que chamamos carinhosamente de regras, mas depois de submetidas ao jogo, as nossas expectativas se reduzem à uma espécie de aposta. Falei disso algumas vezes e mantenho: é muito provável que o jogo jogue conosco mais do que jogamos com ele, de um modo que o que nos cabe, como treinadores e treinadoras, não é tentar controlar o jogo, mas sim refinar a capacidade de resposta individual, grupal e coletiva aos problemas que ele nos apresenta. Pelo mesmo raciocínio, acho imperativo termos claro que o processo de treino, por mais cuidadoso e sistematizado que o seja (inclusive considerando os riscos da hipersistematização, como escrevi aqui), não deve ser visto como uma espécie de coleira que domestica o jogo – pensamento que, na minha modesta opinião, vai nos levar para o buraco -, mas como uma espécie de aposta, da mesma forma como fazemos diversas apostas (ora intuitivas, ora metódicas) na vida cotidiana. Nosso controle, sabemos bem, tem limites.

Não surpreende, aliás, que cause espanto quando se fala elogiosamente sobre a intuição, como fez o van Basten na entrevista: nós chegamos num ponto tal em que tudo aquilo que fuja de uma certa noção de racionalidade é imediatamente escanteado. Mas será mesmo que a tomada de decisão de um jogador ou mesmo de nós, treinadores e treinadoras à beira do campo, é fruto de extensas deliberações racionais, do chamado sistema descendente (Daniel Goleman), ou é fruto de um caminho mais curto, profundamente intuitivo, inclusive fruto de séculos e mais séculos de evolução antropológica? Em tempos de crenças muito grandes na razão, talvez seja preciso repensarmos o lugar da intuição: a questão é de que modo vamos interpretá-la nos nossos processos formativos. Superestimar a intuição (por exemplo, se a confundirmos com um dom divino – podemos falar disso num outro momento) já se mostrou um caminho inadequado, mas subestimar o papel da intuição na tomada de decisão, especialmente se considerarmos a importância da experiência no seu refinamento, também não me parece um caminho muito fértil para o futebol de hoje e de amanhã.

Seguimos em breve.

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