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Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF

Chegamos ao último texto da série Diferencial do Futebol Brasileiro. Ao longo dos últimos 3 textos busquei argumentar sobre como entendo que a etapa de iniciação esportiva, particularmente, a forma como as crianças brasileiras tradicionalmente aprendem a “jogar bola”, é um diferencial destacadamente positivo para a formação de talentos no nosso futebol.

Vale ressaltar, caso você não tenha lido os textos anteriores, que trata-se de uma maneira livre e espontânea, em que as crianças criam e conduzem as próprias brincadeiras de bola nos mais diferentes espaços informais de prática: rua, praia, campinhos, quintal de casa, pátio da escola, quadra do bairro etc.

Esta forma de aprender futebol, combinada por diferentes características brasileiras, já discutidas nos textos anteriores, fizeram com que grande parte da população brasileira nascida no Século XX, tivesse essa experiência em sua vida. Dentre essa parcela da população, algumas pessoas se tornaram jogadores e jogadoras profissionais, chegando até ao mais alto nível de excelência. Refletimos também, que esse cenário ainda existe e segue contribuindo bastante para a formação de talentos no futebol brasileiro, embora a aprendizagem do futebol hoje esteja muito mais formal do que antigamente, desde a primeira infância. Isso é consequência de algumas ameaças, também já abordadas nos textos anteriores, entre outras que ainda podemos abordar futuramente, como a especialização precoce e a pressão do marketing nesse setor socioeconômico.  

No entanto, neste texto, gostaria de destacar a importância desse ambiente informal de prática para além da formação dos talentos esportivos. Para a maioria de nós, cidadãos que tivemos essa experiência e não nos tornamos jogadores profissionais, embora fosse o sonho de grande parte, não podemos dizer que esse período foi em vão. Eu, por exemplo, o vivi intensamente e me lembro com muito carinho da minha infância e adolescência, quando podia passar as tardes jogando bola com meus amigos. E você, possui boas lembranças desse período da vida cheio de brincadeiras livres? Para além das boas recordações, mais coisas daquela época ficaram em mim. Nesse sentido, a Pedagogia é uma grande aliada para investigar a importância desse período para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente. Vamos utilizar a Pedagogia para compreender esse ambiente de brincadeiras informais tão típico da nossa história, para além da aprendizagem do jogo de bola em si? Já pensou no que podemos extrair do jogo para a vida?

Vamos lembrar o que precisávamos fazer para conseguir satisfazer nosso desejo de jogar bola! Primeiro item essencial: precisávamos da bola. Nem sempre tínhamos uma à disposição. Então a inventávamos, com o que fosse possível chutar no espaço que tínhamos. No pátio do colégio era comum não nos darem a bola para jogarmos, então, tampinhas de garrafa pet, latinhas, garrafas, bolinhas de papel e pedras, viravam a bola do nosso jogo. Aqui já temos o primeiro aspecto pedagógico importante a ser observado: a criatividade. Na falta dos recursos ideais para resolver a necessidade de ter uma bola para jogar. A solução dada pela criança – criativa que é – é inventar o seu brinquedo com os recursos disponíveis. Isso ocorria também na falta de traves para fazermos o gol. Bancos, cadeiras, dois chinelos, duas pedras, enfim, quaisquer objetos ou alvos que pudessem simular um gol, nós não pensávamos duas vezes para resolvermos o nosso problema. Portanto, daqui podemos perceber que para a criança criar a sua brincadeira, ela precisará estimular a sua imaginação, criatividade e atitude para que seu desejo de jogar seja satisfeito. Todas essas faculdades mentais, partindo do seu desejo de brincar, são estimuladas e fortalecidas para a criança como um todo. Caso seja desafiada a utilizá-las em outras tarefas, ela poderá aproveitar essa experiência prévia em algum grau.

Vamos seguir nosso raciocínio sobre o que mais a criança precisa para satisfazer o seu desejo lúdico de jogar bola. Um elemento importante é o desenvolvimento de habilidades motoras. Para brincar, ela precisará se relacionar com a bola e transformar as suas intenções em coordenações motoras para executar a habilidade pretendida (condução, passe, chute, controle etc.). Por meio do constante desafio que o movimento imprevisível da bola causa para o sistema coordenativo da criança, ela precisará desenvolver uma série de movimentos novos para conseguir cumprir a sua intenção relacionada à bola. Vamos utilizar o exemplo das embaixadinhas. Brincar de embaixadinha a tornará mais hábil em embaixadinhas, mas também poderá ser útil em habilidades que necessitem de movimentos parecidos, como equilibrar-se em um apoio ou movimentar precisamente os membros inferiores e, particularmente, os pés. Poderíamos citar outro tipo de capacidade também, como uma maior organização espaço-temporal para coordenar o espaço-tempo do movimento da bola com o espaço-tempo do movimento das pernas. A cada movimento da bola na embaixadinha todas essas capacidades são estimuladas e desenvolvidas, podendo ser usadas em desafios maiores do mesmo tipo de habilidade ou em outros da vida da criança, que exijam tais coordenações.   

Mais um item importante para a criança satisfazer seu desejo lúdico de jogar bola é ter com quem brincar. Em espaços públicos, como a rua, parques, praças, praias etc., uma criança pode até começar a jogar sozinha, mas assim que outras crianças compartilham do mesmo espaço, é comum haver o interesse de brincarem juntas. Porém essa brincadeira em conjunto não ocorre de forma natural. É uma convivência construída com a prática de conviver. Existirão conflitos ali que deverão ser resolvidos para que a brincadeira prossiga. Por exemplo, uma criança está brincando em um campinho com um gol. Ela chuta ao gol e depois busca para chutar novamente. Até que chega uma outra criança que quer brincar com ela. Para se enturmar, essa se prontifica a ficar no gol em alguns chutes, mas logo cansa e propõe:

– Que tal se a gente fizer uma disputa? Você chuta 3 e eu chuto 3 para ver quem faz mais gol. Topa? – diz a criança que chegou depois.

– Mas eu não gosto de ir no gol. – diz a dona da bola.

– Então vou brincar de outra coisa. – diz a criança que iniciou o diálogo.

Esta última vai para o outro gol e começa a se pendurar na outra trave, chutar pedras, entre outros jogos solitários. Já a criança dona da bola volta à sua brincadeira de chutar ao gol e buscar, mas logo percebe que estava mais legal brincar com uma companhia. Diante desse conflito, ela grita:

– Ei! Vamos jogar como falou! Mas eu começo chutando! – diz a criança dona da bola.

A criança que brincava sozinha no outro lado da quadra aceita e começa o jogo proposto. Até aqui já podemos perceber o primeiro conflito de interesses, em que ambos perceberam que precisariam ceder para construir algo coletivo mais interessante que aquilo que estavam construindo individualmente. Neste ponto, a criança começa a praticar um grande valor da socialização, que para se construir coletivamente, temos que colocar as nossas vontades em alguns momentos, mas em outros teremos que ceder. O jogo continuou. A criança dona da bola chutou e a outra defendeu, rebatendo. A primeira aproveitou o rebote e logo chutou, comemorando o gol. E iniciou um novo diálogo, a partir daí:

– Não valeu! Não vale rebote! – disse a criança que estava no gol.

– Valeu sim! – disse a criança que chutou, comemorando mais ainda.

Aqui temos mais um conflito. Não haviam previsto essa situação e por isso não combinaram nenhuma regra que resolvesse a questão. Teriam que criar uma regra e um acordo a partir daquele momento de conflito para que o jogo continuasse. Nessa cena descrita podemos perceber mais uma ótima oportunidade em que o jogo pode ensinar algo precioso para a vida. A resolução de conflitos, a criação de regras, a habilidade de ouvir, falar e estabelecer acordos são fundamentais para qualquer sociedade civilizada. As crianças que criam e conduzem as suas próprias brincadeiras são incentivadas a desenvolverem essas habilidades para poderem seguir jogando e se divertindo. Esta é a motivação principal delas. Essa experiência não as fará ter a consciência plena de que estão praticando valores de socialização ou algo do tipo. Mas as dará a oportunidade de vivenciar situações em que esses valores são importantes. Neste ponto, uma pedagogia que busca compreender esse ambiente de aprendizagem, pode se valer dessas situações, para justamente oportunizar essa conscientização. Se cumprida essa etapa, esses conhecimentos poderão ser ainda mais importantes para a vida da criança como um todo.

Eu gostaria de encerrar esta série, destacando este aspecto da iniciação esportiva brasileira, que foi amplamente desenvolvida em ambientes informais de aprendizagem. As experiências vividas a partir dela nos absorviam de maneira integral, e provocavam um desenvolvimento da mesma forma. Não nos viam como futuros jogadores, não nos viam no futuro. O momento que importava era aquele. A vida acontecia plenamente ali. Talvez, por isso guardamos tantas boas recordações desse tempo de infância e adolescência, em que podíamos brincar na rua, ou onde quer que fosse, com as pessoas que queríamos estar, o maior tempo que tivéssemos disponível. A iniciação esportiva formal deve aprender com esses ambientes lúdicos informais, com as crianças como elas são, com a nossa história. Este é o convite!

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