O jogo tem vida

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Crédito imagem: Coritiba/Twitter

Dentro de um jogo, o que é a finalização? A habilidade de chutar ou arremessar a bola em um alvo predeterminado para pontuar? E o drible? A habilidade de conduzir a bola mantendo o seu controle durante o processo? E o passe?

O passe, podemos dizer, é a habilidade de chutar ou arremessar a bola para um colega de equipe. Aqui está a fresta por onde começo a explicar por que acredito que o jogo é algo vivo. Diferentemente dos exemplos no primeiro parágrafo, não tem como excluir a outra pessoa na explicação da ação do passe. Isso é porque é incontornável que o passe seja compreendido mais como uma interação do que ação. Em outras palavras, depende de alguém para realizar o gesto técnico do passe assim como alguém para receber.

Faça um exercício simples: em uma sala fechada e com alguém perto, amasse uma bolinha de papel e com a pessoa te olhando de frente jogue a bolinha para ela. Agora, a pessoa sem a bolinha vira de costas e a outra joga a bolinha sem avisar. O passe ficou quase impossível. Sem a disposição da outra pessoa para receber o passe, ele não existe.

Podemos dizer o mesmo para a finalização, afinal quem ataca tentará marcar ponto, então a goleira da equipe adversária está constantemente interferindo onde finalizar, como e quando. Igualmente no drible, pois são as adversárias os grandes desafios para quem conduz a bola, comunicando (com e sem intenção ao mesmo tempo) com a atacante sobre como, quando e para onde tentar driblar. Isso segue com todos os outros fundamentos nos jogos.

Foi mais ou menos a partir daí que o genial Paco Seirul-lo disse que no futebol não existem ações, mas interações. Os jogadores estão constantemente reagindo às mais diversas situações de jogo, prestando atenção na bola e nos adversários. Como o próprio Seirul-lo diz, “o futebol é um fenômeno complexo (…) de interação, imprevisibilidade, auto-organização dos organismos e variabilidade, onde os critérios de causa única e cumulativos não tem lugar” (Seirul-lo, 2017 p. 31). Porém, gostaria de dar aqui meio passo adiante.

O jogo se dá em um continuado processo de improvisação por parte dos jogadores. Para ajudar aqui trago o antropólogo Tim Ingold, que explica o improviso como “seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam” (Ingold, 2012 p. 38). Ingold entende que a vida – e digo que o jogo também – se forma por um emaranhado de fios vitais que se entrelaçam, não para alcançar um fim, mas para seguir em frente. As coisas são formadas por uma malha de fios, que se atravessam e cruzam, sem começo ou fim. Por isso que no jogo, o passe, finalização ou drible não estão isolados do todo. Existem colegas de equipe, adversários, bola… e é aqui que começo a dar o meio passo além de Paco Seirul-lo.

Voltemos à bolinha de papel para sairmos da sala e imaginar o mesmo exercício um ambiente aberto. Agora tem o vento ou a chuva interferindo o passar da bolinha de papel. Ou seja, existem elementos que estão fora do nosso controle atravessando o lançamento da bolinha no ar. Tim Ingold em seu artigo usa o exemplo de uma pipa: em uma sala fechada, é impossível dela voar, porque não basta a interação entre Eu e o objeto; é necessário o vento para que a pipa ganhe vida e vire o que ele chama de pipa-no-ar. Na mesma lógica escrevi logo no início “dentro de um jogo”
para pensarmos aqui.

Antes de continuar, um momento para esclarecer: é lógico que um jogador tem mais ou menos habilidade individual para realizar o gesto técnico do passe, finalização, drible, cabeceio, etc. Maior habilidade técnica pode permitir uma gama mais vasta do que fazer no jogo. Não se trata disso, mas sim destacar que a jogadora está jogando um jogo. Seguimos.

Em um jogo de futebol de campo, não estão jogando apenas 22 pessoas. A bola (lembra da icônica Jabulani em 2010?), o tempo, a grama, a torcida e como bem lembrou Hudson Martins em sua coluna, a fortuna, tykhe ou simplesmente imprevisibilidade também jogam. Ou melhor, diria que nós jogamos o jogo assim como o jogo joga com seus jogadores. A imprevisibilidade é mencionada por Paco Seirul-lo, por isso que qualquer contribuição que eu possa dar aqui é ínfima comparada com tudo que Seirul-lo já fez. Ainda assim, acredito que seja válida e por isso escrevo essa breve divagação.

Os limites entre jogadores e jogo são porosos, forçando processos complexos de habilidade em quem joga o jogo para que o ambiente seja considerado como parte da dinâmica de seus gestos no jogo. O jogador sente, ouve e olha ao mesmo tempo que joga, caracterizando um movimento de atenção, que só é possível quando o jogador ou jogadora é capaz de responder contínua e fluentemente a perturbações do ambiente, sem a necessidade de interromper a ação (Ingold, 2010 pp. 17-18). Ou seja, é quando o jogador faz parte do jogo, deixando-o fluir por si que a habilidade mais refinada pode ser executada.

Através dos movimentos de atenção que o jogo vai ganhando vida, através dos fluxos e contrafluxos que atravessam seus jogadores e jogadoras. Um jogo é onde “aconteceres” se entrelaçam, se transbordam e se refazem em síncopes. Por sua autotelia e relações humanas, além da sua imprevisibilidade, que Paco Seirul-lo mesmo reconhece e por isso digo que estou no máximo dando meio passo além, acredito que no jogo o que existem são itinerações. Jogadoras e jogadores transitam pelo jogo mais do que o controlam. Na transição, também o transformam, tecendo fios vitais que o atravessam, e é no “dar forma”, na contínua improvisação que reconhecemos como jogar, que o jogo está vivo.

Bibliografia
Ingold Tim Da transmissão de representações à educação da atenção [Periódico] // Educação. – Porto Alegre : [s.n.], jan./abr. de 2010. – pp. 6-25. Ingold Tim Trazendo as coisas de volta à vida [Periódico] // Horizontes Antropológicos. – Porto Alegre : [s.n.], jan./jun. de 2012. – pp. 25-44.

Martins Hudson Universidade do Futebol [Online]. – 31 de mar. de 2021. – 29 de jul. de 2021. – https://universidadedofutebol.com.br/2021/03/31/sobre-o-modelo-de-jogo-como-um-organismo-vivo/.

Seirul-lo Francisco Vargas O treinamento dos esportes em equipe [Livro]. – [s.l.] : Mastercede, 2017.

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