Texto: Rafael Castellani e João Batista Freire não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.
Dezenove de dezembro, data que marcou aquela que foi, para muitos, a mais grandiosa final de Copa do Mundo de todos os tempos e, para alguns, uma das mais espetaculares partidas de futebol da história do esporte mais querido do planeta. Que belo jogo! Messi fez o milagre de conseguir que boa parte dos brasileiros torcesse para a Argentina. Algo impensável até então, diante de tamanha rivalidade com nossos “hermanos”. Torcíamos tanto que nosso desejo era para que o jogo não acabasse. Queríamos que esse jogo fosse eterno ou que todo jogo de futebol fosse assim. Mas não é sempre que os deuses visitam a Terra. Escolhem ocasiões especiais, em que podem jogar pelos pés de seus ungidos, e um deles estava em campo, defendendo a seleção Argentina.
Nem mesmo a eletrizante tensão típica de uma final de Copa do Mundo conseguiu prejudicar a beleza do espetáculo proporcionado por, ao mesmo tempo, refinados e “raçudos” jogadores argentinos, sob a batuta de Messi, e pelos moleques atrevidos da França, liderados por Mbapeé. Os argentinos foram valentes e humildes, à frente da talentosa e brilhante geração de filhos de imigrantes africanos (a maioria deles) que vestiam a camisa da seleção francesa. O futebol de rua, das quadras, da periferia, dos mais pobres, dos negros, da molecada de rua da França deu certo. Fazer frente à seleção argentina bafejada pelos deuses do futebol não é para qualquer um. Haja atrevimento! Desafiar deuses é coisa de titãs.
Um jogo que coroou mais um rei, Messi. E o futebol é tão generoso que permite vários reis ao lado de Pelé e Maradona. Como é bonito ver Messi jogar! O título, enfim, retorna à América do Sul, berço da arte do jogo de bola, do jogo forjado por pés descalços sujos de terra e lama. Mbappé sugeriu que o futebol da América do Sul é menos desenvolvido que o europeu, mas, pelo menos em parte, sua tese caiu por terra na final da Copa. Mbappé erra mais por palavras que por ações. Seu gol contra o excelente goleiro argentino foi daqueles de tirar o fôlego. Se o craque francês falasse de organização, gerenciamento, infraestrutura, tudo bem, mas se estiver falando de talento, técnica, criatividade e arte, ainda temos do lado de baixo do Equador, muito a ensinar. A fornalha donde se forja a arte de fazer futebol é mais quente deste lado do mundo que na Europa. Quanto à pedagogia, daríamos toda a razão a Mbappé se ele nos criticasse, pois que nossos meninos vão às equipes de base dos clubes e praticamente desaprendem o que aprenderam nas ruas. Nossa grande pedagogia ainda está fora das escolas e clubes de futebol. Erro persistente também entre os europeus.
Independentemente de ser este ou aquele país a praticá-lo, o futebol encanta, arregimenta multidões nos estádios ou à frente das telas de TV e computadores. A Copa do mundo masculina de futebol, realizada no Catar, um dos países que mais desrespeitam direitos humanos no mundo, deu prova desse encanto. A equipe campeã, a Argentina, começou perdendo de uma das seleções menos favoritas, a Arábia Saudita. O Brasil perdeu de duas seleções que se mostraram fracas ao longo do torneio. A Alemanha, tetra campeã mundial, não disse a que veio. A tão falada “geração de ouro” belga, também não.
Poucas vezes os profetas do futebol erraram tanto. A “zebra” correu solta pelos gramados nesta edição da Copa do Mundo. E isso devemos à imprevisibilidade. Se ela está presente em todas as ações humanas, em todos os acontecimentos da natureza, em nenhum momento está mais presente que no jogo lúdico. O lúdico é o paraíso da imprevisibilidade, é o que torna o jogo atraente. O mistério encanta, seduz, vicia, e não há jogo sem mistério. Corremos atrás do que não vemos, perseguimos o invisível e o incerto, queremos saber o fim, mas, se ele nos for contado, o jogo perde a graça. A graça do jogo está em não sabermos o que virá adiante.
A Argentina sagrou-se campeã. Mas… e se Polônia ou México tivessem empatado seus jogos contra a Argentina na fase de grupos? E se o goleiro Australiano não tivesse cometido erro inesperado nas oitavas de finais em partida contra a Argentina? E se o Brasil não tivesse tomado o gol de empate por um gravíssimo erro tático contra a Croácia? E se a bola não tivesse desviado no Marquinhos? E se Neymar tivesse batido o primeiro pênalti contra a Croácia? E se a semifinal reunisse Argentina e Brasil? E se o goleiro argentino não fizesse tão brilhante defesa no último lance da prorrogação da final? E se…? E se…?
A expressão intencionalmente repetida inúmeras vezes acima, “e se”, somente nos reforça o aspecto imprevisível do jogo. Por mais que busquemos estudar e analisar o futebol e, acima de tudo, controlar suas variáveis, estaremos sempre sujeitos à sua imprevisibilidade.
Há tantos “ses” para ocultar o imprevisível! Como gostaríamos que eles não existissem, como torcemos para que todo acaso deixe de ser acaso e reúna fatos em nosso favor! Mas se fosse assim, sequer seríamos torcedores, sequer estaríamos escrevendo estas linhas, sequer haveria graça e jogo, sequer a vida valeria a pena.