A arte do desnecessário

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Foi cheio de simbolismo o anúncio da aposentadoria de Ronaldinho Gaúcho, 37. No dia 17 de janeiro deste ano, em um post na rede social Instagram, ele oficializou o desfecho de sua carreira profissional depois de ter passado “quase três décadas dedicadas ao futebol” e fez um agradecimento amplo, genérico, justificado por timidez e por “não ter o costume de falar muito”.
Ronaldinho foi, durante dois ou três anos, o maior jogador de futebol do planeta. Ganhou dois prêmios de melhor do mundo em eleição da Fifa (2004 e 2005), mas isso conta apenas parte da história. Ele não ocupou apenas o topo do esporte: naquele período, o brasileiro foi genial a ponto de ter tornado maior o próprio meio em que estava.
Uma das histórias mais recorrentes sobre Pelé é que o Rei chegou a interromper guerras. Durante excursões com o Santos ou com a seleção brasileira, países paravam o que estavam fazendo apenas para ter a chance de vê-lo em ação. Numa era totalmente diferente, num contexto totalmente diferente e numa proporção totalmente diferente, Ronaldinho tem um mérito extremamente similar. O agora ex-jogador conseguiu atrair atenção e expectativa de um público que é municiado de informações por todos os lados, recebe conteúdo constantemente e tem cada vez menos disponibilidade.
Hoje em dia, talvez o maior desafio do processo de comunicação seja captar e manter atenção do público. É cada vez mais fácil imaginar que o consumidor de informação se disperse ou tenha menos tempo de concentração em determinado tema. Por isso, é extremamente relevante que um jogador de futebol tenha conseguido se transformar em atração e em assunto relevante.
A construção de Ronaldinho como personagem foi alicerçada em uma série de elementos únicos. Contaram aspectos como o carisma, a trajetória vitoriosa e o fato de ter representado alguns dos maiores clubes do planeta, é claro, mas pesaram ainda mais a alegria, o amor quase infantil pelo jogo e uma das traduções mais perfeitas do que é o futebol como entretenimento.
Ronaldinho é, por diversas razões, a antítese do que representam Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, os jogadores que dominaram premiações individuais na última década. O português é eficiente, direto e simboliza o uso de um esforço descomunal para atingir o máximo da capacidade; até por isso, tem uma relação de orgulho exacerbado com o produto que entrega em campo. O argentino, por sua vez, é um minimalista: Messi é genial exatamente por fazer parecer que todos os movimentos são estritamente necessários. O camisa 10 do Barcelona e da seleção argentina é responsável por alguns dos lances mais geniais do futebol nos últimos anos, mas tente revê-los agora, sem o calor do jogo: a impressão é que ele busca sempre a solução mais rápida e que comete poucos excessos (em campo e fora dele).
Se fossem artistas de outro segmento, Ronaldo seria o resultado de anos de dedicação e estudo, com um conteúdo seguro e extremamente focado no que faz sucesso com público e crítica. Messi, por outro lado, seria aquele pintor que não coloca uma cor a mais na tela se não houver necessidade ou aquele escritor que suprime absolutamente todas as linhas menos relevantes de seu livro.
Ronaldinho foi o contrário disso porque nos mostrou o prazer do supérfluo. Foi um jogador que subverteu a lógica de que o futebol, como qualquer jogo, é apenas sobre perder ou ganhar. A distância mais curta entre dois pontos pode ser sempre uma reta, mas o futebol não é sobre a distância mais curta ou mais eficiente; futebol é entretenimento, e uma das principais funções do entretenimento é contar histórias que emocionem verdadeiramente e que produzam encantamento.
No futuro, estou certo de que olharemos para trajetórias de outros jogadores e diremos que foram muito maiores do que Ronaldinho Gaúcho. Cristiano Ronaldo e Messi, por exemplo, têm trajetórias e currículos muito mais significativos. Mas pense bem: é sobre os lances de Cristiano Ronaldo e Messi que você vai contar para seus filhos ou netos?
Até nesse sentido a trajetória de Ronaldinho é única. As principais críticas ao brasileiro são sobre ele não ter conquistado muitos títulos como protagonista ou ter se omitido em muitos momentos decisivos. Contudo, quem diz isso não entende o que significou Ronaldinho ou o quanto ele é relevante em nuances do jogo que vão além do resultado, do protagonismo ou da estratégia. Ele pode não ter encantado em profusão, mas o que ele entregou fez diferença para quem verdadeiramente ama o jogo. Compreender isso demanda um pouco de criatividade, de inocência ou de apreço por um modelo que contraria o pragmatismo.
A relação de Ronaldinho com o jogo sempre foi um amor que transcendia o que acontecia em campo. Era, como outros foram antes, uma figura extremamente onírica. Era um produtor de excessos e de pouco (ou nenhum) compromisso com a realidade, como Buñuel.
Mas Ronaldinho durou pouco. Durou pouco porque esse tipo de relação no futebol de hoje é pouco sustentável. Não só no futebol, aliás: o que ele representou para o esporte é um tipo de figura que tem pouco espaço em qualquer seara.
Antes da Copa do Mundo de 2006, disputada na Alemanha, era comum ler, ver ou ouvir até os comentaristas mais comedidos questionando se Ronaldinho poderia estar entre nomes como Pelé e Garrincha em caso de uma campanha positiva da seleção. Depois de o time nacional ter sido eliminado pela França nas quartas de final, a marca que ficou daquele certame foi a de uma equipe que levou o evento pouco a sério, que se preparou mal e que teve jogadores pouco comprometidos.
Depois daquela frustração, a figura de Ronaldinho viveu apenas de lampejos. Foi o jogador que fracassou no Flamengo, a despeito de ter produzido mais uma série de lances plásticos para sua coleção pessoal, mas também foi um dos líderes de um Atlético-MG campeão da Libertadores, por exemplo. Voltou a frequentar listas de convocados para a seleção, mas não chegou às Copas de 2010 ou 2014, por exemplo.
Em vez de amadurecer, ser o líder que dele se esperava ou lutar para que seu talento tivesse longevidade no alto nível competitivo, Ronaldinho foi se apagando. Lembrar dele hoje é pensar mais no que ele poderia ter sido do que no que ele realmente foi.
Todas essas questões têm a ver, é claro, com a comunicação da figura Ronaldinho. O jogador que, como ele mesmo disse no ocaso da carreira, “nunca gostou de falar muito”, acabou sendo um exemplo de gênio muito cobrado por coisas que jamais tentou entregar. Acabou lidando com expectativas descabidas e fez isso com um silêncio que mais pareceu escapismo.
Por isso o anúncio da aposentadoria é tão simbólico. Ronaldinho escolheu o Instagram e uma mensagem genérica porque ele precisava dar alguma satisfação, mas nunca foi uma pessoa exatamente preocupada com a imagem pública. No fim, além da genialidade com a bola nos pés, o que fica sobre o brasileiro é a ideia de alguém que não soube conduzir a carreira e que se subjugou (por interesse ou apenas por uma questão de personalidade) diante de um irmão que realmente era o protagonista da “empresa Ronaldinho”.
Ronaldinho poderia ter ficado para a história como um dos maiores exemplos de amor ao jogo. Podia ser o símbolo de magia em diferentes acepções da palavra (por ser um produtor de surpresas ou por provocar uma relação mágica das pessoas com o jogo, por exemplo). Em vez disso, por silêncio ou por dificuldade para se explicar, acaba a trajetória como um produtor de lampejos. Ronaldinho foi um gênio, mas um gênio hermético em muitos momentos. Talvez em algumas décadas possamos compreender exatamente o tamanho de seu legado.

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