Quando comecei a escrever para a Universidade do Futebol, em junho de 2018, logo no primeiro texto citei diretamente um dos assuntos que achava mais importantes à época, e que acho fundamental até hoje: isso que podemos chamar de processo de humanização no futebol. É um dos temas que persigo há algum tempo, ainda que seja uma busca menos preocupada com a chegada do que com o percurso. O que é saudável, claro.
Não faz muito tempo, recebi um convite do professor João Paulo Medina para organizar uma espécie de grupo de estudos próximo disso que se entende por um olhar mais humanizado do futebol. Claro que fiquei lisonjeado, porque acredito num tipo de futebol que existe em razão do humano – e não apesar dele. Mais do que isso, acredito que é importante que nos formemos a partir da humanidade, com agá minúsculo mesmo, mas também dentro das humanidades da humanidade: se, por um lado, tornar-se profissional do futebol é algo que se faz no mundo (portanto, se faz do lado de fora de nós mesmos), tornar-se profissional do futebol também é algo que se faz a partir de si, da própria subjetividade, da própria história, dos nossos próprios limites e das nossas próprias contradições (portanto, se faz do lado de dentro de nós mesmos). Tratar dessas coisas é algo de fato muito agradável. Ao mesmo tempo, é algo que carece de cuidado e, especialmente, de refinamento.
Por isso, pelo menos por enquanto momento, quando penso no processo de humanização – e naquilo que o acompanha – acho importante fazer alguns recortes. Neste texto, vamos fazer pelo menos três deles, sobre os quais podemos falar aos pouquinhos. Mas vamos ilustrá-los brevemente aqui:
– em primeiro lugar, embora não seja uma novidade, é de fato significativo que tenhamos normalizado o fato tratarmos as pessoas enquanto objetos.
Ou seja, ao invés de nos tratarmos como pessoas, dotadas de uma subjetividade intransferível, basicamente nos tratamos a partir de premissas mais objetivas (portanto gerais, universais), o que significa que nossas relações são cada vez mais utilitárias, uma vez que nos vemos como coisas, não como pessoas. Se quiser ir além, perceba que não isso significa apenas que tratamos os outros como objetos (geralmente para atingir os nossos próprios fins) mas, mais importante do que isso, tornou-se comum que tratemos a nós mesmos como objetos, empresas de nós mesmos (e, na mesma linha, descartáveis por nós mesmos). É claro que isso não nasce do chão, é fruto de um conjunto de ideias e de visões de mundo e, a meu ver, são justamente essas ideias e essas visões de mundo que devemos retorcer se acreditamos num futebol mais humanizado e, obviamente, se acreditamos que uma vida mais humanizado é mais significativa do que uma vida coisificada.
– em segundo lugar, me chama a atenção o quanto se fala do processo de humanização, o quanto se fala da importância de formar pessoas, ao invés de apenas atletas, da atenção que supostamente damos a isso tudo, das performances com que às vezes se fala disso tudo, mas que costumeiramente escondem que entende que falar do humano no futebol é um algo muito legal, é muito bonito, às vezes muito agradável, mas na verdade é mais um enfeite, um adorno, até mesmo um pedágio: é um discurso socialmente aceito, às vezes necessário para projetar uma certa imagem de bom-mocismo, ainda que nem sempre esteja comprometido com a prática.
Por isso, na vida vivida, me parece que o humano continua sendo um enfeite, um adorno, até mesmo um pedágio e, como às vezes acontece com os pedágios, pode ser um pedágio caro, que nem todos estão dispostos a pagar. Talvez seja importante decidirmos se queremos nos manter no campo dos discursos, ou se estamos de fato interessados em avançar, todos os dias, na articulação de uma vida mais humanizada, que reconhece e admira a humanidade do humano na mesma medida em que percebe que tratar da humanidade do humano no futebol não é um gasto, é uma necessidade: um atleta pela metade geralmente não será melhor do que um atleta inteiro. E, hoje em dia, estar pela metade é a regra.
– em terceiro lugar, em arrastamento do ponto anterior, me chama a atenção como sempre fica subentendido que quando tratamos do humano, ou quando tratamos das pessoas enquanto pessoas, e não como coisas, somos geralmente reduzidos a uma certa dimensão teórica, de articulações teóricas, de devaneios teóricos e que, por muitas vezes, seriam apenas e tão somente teóricos – mas insustentáveis na prática.
Não por acaso, geralmente encontramos alguma dificuldade em exercer a nossa humanidade na prática, especialmente em um tempo de tantos conteúdos técnicos, de tantas formações, de tanto conhecimento, de tanta informação… mas de tão pouca humanidade. Ou seja, mesmo sabendo que as nossas práticas, ainda que sejam práticas, podem ser estéreis, ocas, vazias no sentido que mais importa, nós preferimos que elas continuem assim do que investir tempo e energia no sentido de algo mais potente.
A boa notícia é que humanizar o futebol e a vida vivida não começam (e não terminam) em blá blá blás teóricos, mas é algo essencialmente prático, é uma forma de estar no mundo, de relacionar-se com o outro, de organizar um processo de treino, de aplicar um determinado treinamento, de olhar para nós mesmos, nossos atletas e colegas de trabalho, de abrir-se ao movimento do mundo, de fazer, de pensar, de sentir. Este, aliás, é um ponto prático de atenção: se normalizamos apenas uma ou duas formas de estar no mundo, como as pessoas não-normativas (não raro geniais), que fogem à norma, podem ser quem são? Como esperar que pássaros voem em gaiolas pequenas? É preciso criar normas, mas também é preciso recriá-las.
Para isso, neste primeiro momento, convidei sete pessoas para ampliar meus próprios limites e os limites deste debate: Aline Castro, Annie Kopanakis, Gabriel Puopolo, Gabriela Montesano, Luis Felipe Nogueira, Lucas Leonardo, Thais Toledo. São elas que, por ora, dividem comigo o espaço deste grupo, no qual nos propomos a um falar e um fazer no futebol (é o que nos une, afinal), mas um falar e um fazer por um olhar humanizado, plural, contingente, imanente – dentro e através de todos esses entes, de todos esses ismos, de áreas diferentes, com histórias diferentes. É um pouco do que gostaria de propor a cada semana de agora em diante.
E claro que contamos com vocês nessa jornada.
Continuamos em breve.
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PS: Daqui em diante, todos os textos meus na Universidade do Futebol são dedicados à memória da querida colega Leticia Fava, que partiu tão cedo, mas que deixa com a gente memórias de muita atenção e de muito carinho, que sempre guardamos em todos os momentos.