Entre a razão e as intuições ofensivas

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Romário: um gênio da razão ou da intuição na ocupação do espaço? (Foto: Reprodução/Trivela)

 
Não são poucas as vezes em que esbarro, em uma leitura ou outra, especialmente na literatura do início do século pra cá (já sob o efeito do furacão que foi José Mourinho), com a ideia que dá título à conversa que gostaria de propor hoje: que é preciso, especialmente no ataque, ocupar os espaços de forma ‘racional’, que é preciso ‘racionalizar os espaços’, que quanto mais os espaços ofensivos forem ‘racionalizados’, melhor será a qualidade dos ataques.
Sendo bastante honesto, este termo não me agrada muito. Na verdade, acho que traz consequências negativas em potencial, não apenas do ponto de vista das ideias, como especialmente do ponto de vista do treino. Por isso, vou deixar algumas impressões que me ocorrem abaixo. Seguimos a conversa nos comentários.

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Vejam bem, a primeira coisa que fica subentendida nessa racionalização dos espaços é que o espaço, no jogo de futebol, pode ser usado, o espaço pode ser utilizado como uma coisa, e pode ser um meio para alguma outra coisa. Não acho que seja uma ideia de todo errada (posso tratar disso num outro momento), mas acho importante traçarmos uma linha aqui: uma coisa é o tipo de espaço que gostaríamos de ocupar em condições ideais, mas outra coisa, completamente diferente, são os espaços que ocupamos no jogo real, no jogo que se joga, de fato. Se levarmos em conta uma premissa básica do jogo, que é a imprevisibilidade (Johan Huizinga, Roger Caillois), podemos dizer que é até possível imaginarmos que a probabilidade de ocorrência de uma dada situação existe (vide o trabalho dos amigos analistas de desempenho), mas não sabemos quando vai ocorrer, não sabemos ao certo onde estarão nossos companheiros, onde estarão os adversários, onde estará a bola… sabemos bem menos do que gostaríamos de saber. Ou seja, de alguma forma, a decisão que tomamos no jogo jogado, assim como a decisão que nossos atletas tomam no jogo jogado, é uma decisão reativa – mas não reativa do ponto de vista do adversário, mas reativa do ponto de vista do jogo. Nós passamos geralmente mais tempo respondendo aos problemas colocados pelo jogo, e não o jogo respondendo a problemas colocados por nós. Uma vez que o jogo não pode ser previsto (pre-visto, visto em antecipação) e sabendo que os problemas do jogo exigem respostas imediatas, como podemos dizer que as melhores resposta serão exatamente ‘racionais’? Percebem o problema?
Em segundo lugar, também fica subentendido que o uso racional do espaço, exatamente por ser racional, é um uso melhor. Este é um problema sério – que talvez nem os nossos colegas da neurociência consigam responder com segurança. Veja bem, é como se houvesse usos irracionais do espaço (das equipes mais ‘anárquicas’, digamos assim) e, de outro lado, usos mais racionais do espaço (supostamente o uso das equipes chamadas de organizadas). Daí que as equipes que usam o espaço de maneira ‘racional’ são aquelas que supostamente pensaram mais e melhor o jogo, pensaram o jogo com antecedência, criaram cenários e mais cenários (especialmente durante o processo de treino) de modo que essa suposta racionalização fique mais clara. De novo, não acho que seja um entendimento de todo equivocado, porque no processo de treino de fato tentamos nos preparar em antecipação aos problemas que já ocorreram e aos problemas que podem vir a ocorrer no jogo jogado. Mas também gostaria de colocar um contraponto importante.
Pense um exemplo comigo: as pessoas racionais são e serão necessariamente melhores do que as pessoas emotivas? É claro que há graus e graus de sujeitos racionais, mas se partirmos daquela premissa, que escrevi ali em cima, quando apresentei o que parece subentendido na racionalização dos espaços, que quanto mais racional, melhor, então poderíamos concluir que o mesmo vale para os sujeitos que jogam o jogo e que vivem a vida vivida, que quanto mais racionais elas forem, melhores serão. Muito bem, isso se sustenta do ponto de vista humano? Porque há sujeitos que exercitam demasiado a razão, que exercitam tanto a ponto de esconderem as emoções, ou mesmo a ponto de negá-las. Será que esses sujeitos, que eventualmente se tornam obsessivos, controladores, manipuladores, eventualmente narcisistas (sendo narcisista o sujeito que precisamente ameniza ou nega as emoções), será que esses sujeitos realmente serão melhores, do ponto de vista humano? Pois se não, se o caminho estiver no meio, numa tentativa de equilíbrio e harmonia entre razão e as paixões, de exercício da razão e do pensamento ao mesmo tempo em que nos damos o direito de sentir, de nos abrirmos ao mundo, de deixarmos que o mundo nos toque, que a vida nos passe na mesma medida em que passamos por ela, se este for o caminho então vocês haverão de convir comigo que a racionalização tem limites, que ser ou estar mais racional pode deixar de ser saudável e passar a ser patológico e que isso pode valer tanto em nível individual quanto para uma equipe de futebol, por exemplo. Percebem como as fronteiras entre o jogo jogado e a vida vivida são menores do que se supõe?
Não me surpreende, portanto, que vez por outra fiquemos entediados assistindo um jogo ou outro de futebol, porque às vezes há uma tentativa tão grande de ‘racionalizar os espaços’, há uma obsessão tão grande e incontornável pelo controle do espaço e do jogo, que as vias intuitivas, o pensamento rápido (que, nos disse Daniel Kahnemann, é o pensamento intuitivo) vai ficando murcho, vai se tornando flácido, e aí não admira que nosso futebol também fique flácido, que perca potência, que nossa conduta seja tão paranoica e pretensiosa que agora só nos resta olharmos para nós mesmos, esgotados e frustrados, porque o jogo escorre pelas nossas mãos, contra a nossa vontade.
Tudo isso é importante por um motivo, em particular: como já escrevi em outros momentos, defendo um olhar humanizado do jogo de futebol. Por olhar humanizado, vamos entender aqui um olhar realista, que entenda as potencialidades do humano, mas também entende que ela tem limites, limites esses que escapam da própria razão.

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Embora pareça apenas uma questão semântica (lembre-se da conversa que tivemos semana passada, sobre o jogo de palavras), sinto que este é um problema que ultrapassa a linguagem e vai exatamente para o campo – e por isso me interessa tanto. Alguns dos melhores jogadores e das melhores equipes que conheci fazem e fizeram exatamente o contrário, não era tanto uma racionalização, mas uma intuição do espaço, uma intuição que não é sinônimo de anarquia, mas é aceitação das paixões, um saber que não se sabia de onde vinha, mas que era exatamente o que fazia daquelas equipes e jogadores inteligentes como eram e, ao mesmo tempo, que os faziam precisamente humanos.
O coração, como nos disse o Pascal, tem razões que a própria razão desconhece. E talvez possamos tratar mais disso no jogo jogado.
 

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