Protagonistas: quando falar é pior

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Em qualquer campanha de comunicação, o uso de protagonistas segue duas premissas básicas: humanizar a mensagem e criar uma relação de aspiração. Em outras palavras, o porta-voz de uma marca é escolhido para dar às pessoas uma imagem mais humana e para que o público-alvo queira ser como ele. Nas duas situações, a responsabilidade de quem dá a cara a um produto é gigantesca. E esse é só um exemplo extremo do quanto a imagem pode ser valiosa.

Nomes que fazem sucesso no esporte costumam ser protagonistas em campanhas de produtos de diversos segmentos. Não é por acaso: neles as pessoas encontram exemplos de atributos como dedicação, trabalho em equipe e sucesso.

Personagens oriundos do esporte têm ainda outra vantagem: lidam com o emocional de quem consome a informação. O atleta que desempenha papel decisivo em uma vitória ou conquista proporciona satisfação para o torcedor. É uma geração natural de empatia.

Se um ator diz que um produto é bom, o peso é um. Se um atleta usa o mesmo produto, as pessoas que o idolatram ou que seguem o time dele vão ter naturalmente uma relação mais próxima com a marca. O peso é outro. Essa é uma das principais razões de algumas companhias investirem tanto em atletas como porta-vozes.

Há outro ponto: a voz de quem é do esporte reverbera. É claro que muita coisa se perde pelo excesso de informações do segmento, mas é inegável a capacidade de mídia do segmento.

O “problema” é que esses protagonistas são humanos, e como humanos são sujeitos a erros. São mais do que rótulos ou personagens criados para agradar a um determinado grupo.

Já falamos sobre isso diversas vezes, e esse risco existe com qualquer protagonista. O mesmo risco que uma marca corre com um atleta aparece se a empresa apostar em um ator, músico ou apresentador de TV.

No último mês, a liga profissional de futebol americano (NFL) teve uma discussão sobre isso. Dois grandes jogadores foram envolvidos em escândalos pessoais (Adrian Peterson foi acusado de agredir o filho, e Ray Rice foi filmado agredindo a namorada). Isso deflagrou enorme discussão na competição, a ponto de alguns patrocinadores terem manifestado publicamente que estavam preocupados.

São exemplos extremos, é claro, mas o esporte brasileiro não teve o mesmo nível de discussão após declarações recentes envolvendo o goleiro Aranha, titular do Santos, alvo de ofensas racistas em jogo contra o Grêmio.

“Acho que o Aranha se precipitou um pouco ao querer brigar e parar o jogo. Se eu fosse parar o jogo toda vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo ia parar. O torcedor, dentro da sua animação e animosidade, ele grita”, disse Pelé sobre o episódio.

O caso envolvendo Aranha repercutiu muito. O Grêmio, que já realizava campanhas contra o racismo, chegou a emitir uma carta à Fifa para explicar o episódio. O técnico Luiz Felipe Scolari escreveu um bilhete em nome do elenco e mandou ao goleiro do Santos.

Ainda assim, o time gaúcho foi punido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Em sessão da comissão disciplinar, o Grêmio foi excluído da Copa do Brasil por causa do comportamento de seus torcedores – ainda que alguns tenham sido identificados e indiciados.

“Foi tudo uma grande encenação do goleiro”, classificou Adalberto Preis, um dos vice-presidentes do Grêmio. “Às vezes, ficamos com a impressão de que não perdoaram o Felipão pela goleada de 7 a 1 para a Alemanha e se voltam contra a gente por causa disso”, completou Odorico Roman, outro dos vice-presidentes do clube, à “ESPN”.

Scolari fez ainda pior. “Vamos ver se eles vão cair na esparrela do Aranha de novo”, disse o técnico a jornalistas, sugerindo que o goleiro tenha armado o que as câmeras mostraram de forma clara.

Essas declarações podem ter sido feitas com intuito de defender o Grêmio. O que elas conseguiram, contudo, foi criar um clima ainda mais hostil para Aranha quando o goleiro voltou a jogar na Arena do Grêmio. Ele foi vaiado e xingado durante quase toda a partida.

O ambiente que cercou Aranha foi lamentável, e é bom deixar isso claro, mas o foco da discussão aqui não é nem esse. O ponto é: o que essas declarações de Pelé e dos gremistas acrescentaram ao debate? Em que elas foram úteis para analisar um problema que é complexo, arraigado na nossa cultura e cruel para um grande contingente da população?

A questão aqui é entender o alcance. Personagens do esporte têm enorme capacidade para direcionar discussões e formar opinião. Ignorar isso é uma enorme falta de entendimento do ambiente.

Pelé, por exemplo: o que ele viveu é importante, claro, mas em que a realidade do atleta Pelé acrescenta à discussão? Ele é o maior jogador de todos os tempos, figura que repercute em âmbito internacional. Em que ele ajudou no debate sobre racismo no futebol?

Os gremistas, então: eles podem ter pensado no clube e defendido os próprios interesses, mas qual das declarações ajudou alguém a pensar no que foi feito e no quanto o racismo permeia o cotidiano da sociedade brasileira, não apenas nos estádios?

Sim, vivemos numa sociedade de ranço racista. Temos uma democracia jovem, na qual a igualdade ainda é um conceito extremamente frágil. O estádio é apenas um reflexo disso.

A questão é que o esporte tem potencial para fazer o caminho inverso. Se o que acontece nos estádios é reflexo do perfil da sociedade, é possível que isso também influencie a formação da população. Mas alguém se preocupa com isso?

Em tempo: no dia 8 de setembro, a coluna “O poder da palavra”, publicada aqui na Universidade do Futebol, também falou sobre o caso Aranha. A intenção do texto não foi diminuir o caso ou defender os envolvidos. O goleiro do Santos foi alvo de ofensas racistas, e ofensas racistas são sempre condenáveis. O ponto da discussão ali foi outro: não podemos impingir rótulos a quem comete um erro, por mais grave que seja o erro.

O que aconteceu com Aranha foi criminoso e indefensável. As pessoas responsáveis devem ser julgadas e condenadas. Só não se pode limitar ninguém a isso. Pessoas são complexas, passíveis de erros e acertos, e qualquer discussão precisa considerar isso. 

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