Representatividade

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Todo torcedor tem na cabeça um modelo do que espera ver de seu time em campo. É uma projeção baseada em uma série de preceitos individuais, como memória afetiva e ideal pessoal de jogo, mas essa utopia também leva em consideração o DNA da própria instituição. O futebol é só um exemplo de ambiente em que vários caminhos podem desencadear vitória ou derrota. Em casos assim, mais do que o resultado, é fundamental pensar no percurso.
A Europa tem exemplos extremamente burilados disso. O Barcelona não joga apenas para ser campeão, mas para impor um estilo. O Arsenal desenvolveu com o técnico francês Arsène Wenger um modelo característico, e isso se sobrepõe a resultados. O Real Madrid nunca vai ser tão horizontal quanto essas equipes e nunca vai abrir mão de atletas que tenham relevância midiática.
Não há projetos tão claros no Brasil, mas também pesam no país a história e o perfil dos times. A expectativa de um torcedor do Grêmio é radicalmente diferente do que espera alguém que gosta do Cruzeiro ou da utopia de um adepto do Santos. Tudo tem a ver com o que essas pessoas projetam. Tudo tem a ver com representatividade.
Nesse sentido, a Fifa deu um passo importantíssimo na última sexta-feira (13), quando anunciou a senegalesa Fatma Samba Diouf Samoura como nova secretária-geral da entidade. Uma mulher negra e africana agora ocupa o segundo cargo na hierarquia da principal entidade do futebol mundial. O mesmo posto que até outro dia era de Jérôme Valcke, francês branco, elitista e de comportamento misógino.
Samoura tem mais de duas décadas de experiência em programas da ONU (Organização das Nações Unidas) e está extremamente alinhada com os desafios que a Fifa terá nos próximos anos. É uma mulher com vivência em aspectos como inclusão social, igualdade de gênero e desenvolvimento de políticas voltadas à disseminação do esporte.
A escolha também é uma demonstração de boa vontade da Fifa com um novo tempo. A entidade ainda vive a sombra de uma avalanche de escândalos que derrubaram Joseph Blatter, antigo presidente, e o próprio Valcke. Dirigentes que eram poderosos até outro dia, como o brasileiro José Maria Marin, foram presos por crimes de gestão e agora tentam se explicar à Justiça.
Gianni Infantino, eleito neste ano para comandar a Fifa, não é um personagem alheio a tudo isso. O suíço também enfrenta acusações do período em que trabalhava na Uefa, entidade que comanda o futebol europeu, e já tomou medidas controversas na após ter sido alçado à presidência da instituição global. Mudanças de estatuto aprovadas também na última sexta-feira deram a ele poderes que nem Blatter tinha e acabaram com a independência nas investigações sobre a gestão da associação.
Todos esses aspectos criam grandes interrogações sobre Infantino, mas a nomeação de Samoura é uma decisão extremamente salutar. No mínimo é uma demonstração de que a Fifa está realmente preocupada com visões que extrapolem os pontos de vista da classe que sempre comandou a entidade.
Samoura podia ter outros concorrentes igualmente competentes, mas a escolha da senegalesa para o cargo abre para a Fifa uma nova perspectiva. Isso é fundamental numa entidade representativa, que abarca interesses tão distintos e antagônicos.
Porque assim como na composição do time ideal ou na escolha de um modelo ideal de jogo, não há apenas uma forma de gerir uma entidade. A Fifa pode escolher diferentes caminhos para o que considera ser o futebol do futuro, e todos eles podem render bons resultados. O que é relevante, no caso da escolha da secretária-geral, não é nem discutir se ela é a pessoa mais competente ou mais indicada para o cargo: nesse episódio, o que conta é a possibilidade de uma pessoa que representa minorias tão oprimidas na história do esporte possa participar de discussões sobre o futuro e influenciar o debate.
É (também) por isso que a discussão sobre representatividade é tão relevante sobre o governo federal. O ministério escolhido pelo vice-usurpador Michel Temer não tem nenhum negro e nenhuma mulher, fato que não acontecia desde a gestão do militar Ernesto Geizel (1974-1979).
Temer também acabou com as secretarias das Mulheres, da Igualdade Social e dos Direitos Humanos, que foram absorvidas pelo Ministério da Justiça e da Cidadania.
A redução dos custos do funcionalismo público é uma discussão extremamente pertinente, é verdade. A competência das pessoas escolhidas para comandar os destinos do país também deve ser condição primordial. Contudo, essas duas decisões mostram orientações preocupantes (para dizer o mínimo) sobre representatividade.
Sem querer estabelecer comparações, mas um governo, assim como um time ou uma federação, tem diferentes caminhos possíveis. É justo imaginar de diferentes formas a condução ideal de um país. No entanto, a visão que um grupo homogêneo de pessoas oferece está longe de ser suficientemente plural.
Um homem branco, heterossexual e criado com boas condições socioeconômicas está longe de entender o que é fazer parte de uma minoria oprimida. Também passa distante de qualquer conhecimento sobre o que é ter necessidades sociais que sejam coletivas e que tenham natureza balizada apenas por um comportamento social histórico.
A Fifa pode não mudar depois da nomeação de Samoura, mas ao menos terá em seu corpo diretivo uma perspectiva diferente. Isso nos abre possibilidades extremamente positivas de pensar em novos direcionamentos para a entidade. O governo federal do Brasil, infelizmente, preferiu uma guinada ao passado. E à pior parte do passado, (também) no sentido de representatividade.

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