Sobre as ‘competências sociais’ de treinadores em geral

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Julian Nagelsmann, treinador do Hoffenheim: as relações estão no centro do processo. (Divulgação: ZDF)

 
Quando o Hoffenheim anunciou a efetivação de Julian Nagelsmann (hoje, já acertado com o Red Bull Leipzig), há quase três anos, houve uma espécie de surpresa, uma incredulidade epidêmica. Na época, Nagelsmann tinha apenas 28 anos – o mais jovem treinador da história da Bundesliga. Naqueles dias, por sinal, lembro-me bem de ter enviado um e-mail para o Hoffenheim, claro que não para falar da nova contratação, mas para saber um pouco sobre as categorias de base: Alexander Rosen, diretor de futebol à época, disse algo neste sentido, que a confiança em um treinador jovem de Nagelsmann refletia uma espécie de filosofia do clube, de investimento em talentos próprios e etc. É interessante lembrar (embora não seja meu foco aqui), que apesar de muito jovem, Nagelsmann só não era mais velho do que dois atletas daquele grupo.
Além de nos impressionar como treinador – já premiado, trabalho absolutamente elogiável – Nagelsmann também nos trouxe algumas declarações bastante interessantes. Uma delas parece ter ressado especialmente: em linhas gerais, Nagelsmann disse que treinadores precisam dominar 30% de competências táticas e 70% de ‘competências sociais’. Deixo abaixo, em tradução livre, um comentário do próprio Julian (numa ótima entrevista, por sinal) quando perguntado sobre a declaração:
“Se você é o melhor treinador do ponto de vista técnico, mas não tão bom com personalidades, então você não terá o sucesso necessário. Você será bem-sucedido, mas não estará no topo do jogo. Se você é ótimo com personalidades, mas não tem nada para oferecer tecnicamente, então também será difícil. Mas se você tem um nível básico de compreensão técnica e suas competências sociais são muito boas, então você será muito bem sucedido. Uma boa compreensão técnica e apenas o suficiente sobre personalidades também funciona durante um certo período de tempo, mas quanto mais tempo você trabalha com um time, mais importante se torna o relacionamento com seus jogadores.
Se você quer sucesso a curto prazo, o conhecimento técnico é suficiente, mas para o sucesso a longo prazo, você tem que ter uma ideia de como lidar com pessoas, como fazê-las trabalhar em conjunto, como lidar com questões particulares dos jogadores – clarear suas mentes, ser empático é muito importante. Usei a porcentagem de 30 a 70, mas também pode ser de 40 a 60, e isso depende da situação. Quanto pior é um clube, mais empatia você tem que ter. Quanto mais bem sucedido for todo o clube e melhor for a atmosfera, então você poderá se concentrar mais no material. É sempre uma relação em favor da competência social, no entanto.”
Pensando como treinador, meu sentimento lendo este trecho é sempre ambivalente: de um lado, acho admirável a lucidez de Nagelsmann, especialmente sobre um tema que até hoje é escanteado (especialmente na prática, a despeito da retórica). Por outro lado, me causa uma certa surpresa que fiquemos tão impressionados com algo que, no fim das contas, é óbvio: para além de todos os saberes, o futebol se faz por pessoas. O estudo, o refinamento racional diligente são necessários, mas eles, sozinhos, têm um alcance limitado do humano. O cultivo de relações saudáveis ao longo do tempo é um desafio que enevoa a atividade de treinadores, treinadoras e quaisquer profissionais que se dedicam ao esporte, independentemente do contexto.
Mas no que pensamos quando pensamos em relações saudáveis? Veja bem, este é um ponto importante: cultivar boas relações não é sinônimo de idealismo ou submissão, por exemplo. Não significa ser bonzinho ao longo do tempo (aliás, a perfeição moral, como busca humana, não parece uma ideia exatamente interessante). Significa outra coisa: se olharmos para a história, para um sujeito como Maquiavel, por exemplo, encontramos um pensamento bastante interessante sobre as fragilidades de ser moralmente estável ao longo do tempo (algo próximo do que ele chamaria de virtu, ainda que em uma outra conotação, essencialmente política). Para treinadores e treinadoras que desejam construir bons vínculos é preciso repensar os reais benefícios de uma única roupagem moral ao longo do tempo. Quem é moralmente uno, é previsível. E quem é previsível se afasta da sorte (da fortuna, se você preferir).
Evidente que isso não nos autoriza à ignorância gratuita. Não, é claro que é preciso apoiar-se no respeito mútuo, na construção de firmes laços de confiança com jogadores e todo o clube, só que isso não se faz pela docilidade perene (menos ainda no esporte): daí a importância de subjetivar as relações. Assim como os princípios do treinamento nos alertam para a individualidade biológica, também é preciso atentar-se para uma espécie de individualidade relacional, as nuances próprias das personalidades envolvidas em cada relação, o que exige grande necessidade de observação (muitas vezes discreta), diversas experiências na vida vivida e, como bem observou Nagelsmann, uma enorme dose de empatia. Para humanizar as relações, é preciso colocar-se rotineiramente no lugar do outro.
Humanizar as relações sem romantizá-las é um desafio feroz. Maria Lúcia Homem, neste excelente vídeo, faz um comentário bastante pertinente (que indico especialmente aos papais e mamães) sobre a natureza da maternidade: as relações entre pais e filhos estão cercadas de ambivalência. Ou seja, não existe amor puro, nem ódio puro. Existem diversos espectros, lugares que ocupamos e que nos ocupam a cada momento, muitas vezes para além do nosso controle racional. A mesma ambivalência (ainda que em intensidades diferentes) acontece nas nossas relações profissionais, acontece no futebol. Haverá momentos de alegria e proximidade, outros de profunda frustração, solidão ou raiva. Mediar todos esses laços, ao mesmo tempo em que se é parte deles, é um dos grandes mistérios a serem descobertos, sentidos por treinadores e treinadoras. Não bastasse a complexidade da tarefa em si, lembre-se ainda de que esses laços não são visíveis.
Tornar-se treinador ou treinadora não é uma equação, não se faz a partir de 70/30 ou 60/40: se faz aberto, lançado em um turbilhão relacional. É uma participação observante, um campo minado capaz de lindas recompensas quando atravessado, mas que, evidentemente, exige absoluto zelo. Principalmente, é um desafio que não se concretiza em teorias previamente lidas ou pela retórica isolada. É algo que se faz, fortemente, a partir da experiência. Experiência de vida – que, como nos sugere Nagelsmann, independe da idade!
O que exige, além de olhar para fora, um profundo olhar para si.
 

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