Sobre as essências do futebol e a riqueza do possível

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A Holanda dos anos 1970 – o possível é mais rico do que o real? (Foto: Reprodução/These Football Times)

 
Existe uma passagem muito bonita, citada pelo professor Manuel Sergio, naquele grande livro Filosofia do Futebol, por onde gostaria de começar nossa conversa de hoje. Falo do seguinte trecho, escrito pelo sociólogo americano Immanuel Wallerstein:
“É importante perceber o que são e o que não são os estudos da complexidade. Não se trata de rejeitar a ciência, enquanto modo de conhecimento. Trata-se de rejeitar uma ciência baseada na concepção de uma natureza passiva, em que toda a verdade já está inscrita nas estruturas do universo. Trata-se na verdade de acreditar que o possível é mais rico do que o real.”
Não sei vocês, mas a mim este trecho, especialmente a segunda metade, me tocou bastante. Na nossa conversa de hoje, gostaria que partíssemos dele, para pensarmos, pelo futebol, esta ‘verdade inscrita nas estruturas do universo’ e este ‘possível mais rico do que o real’.

***

Deixem-me só contextualizar aquela citação: ali, Manuel Sergio escrevia sobre a importância de considerar a hipótese da complexidade (complexus = aquilo que é tecido junto) para um olhar mais afiado sobre o futebol. Afinal, uma equipe de futebol não é exatamente a soma das suas partes, mas sim as interações entre elas. E para considerar a complexidade, para considerar que as coisas são tecidas juntas, é preciso repensar tanto as relações sujeito/objeto (sejam elas relações entre pessoas e coisas, sejam as próprias relações entre pessoas e pessoas, uma vez que a objetificação dos outros é um problema importante e uma barreira ao processo de humanização, que defendo aqui há algum tempo), quanto as noções que temos sobre a própria natureza (especialmente se pensarmos natureza como princípio, origem, ordem, ou como tudo aquilo que não tem interferência humana). Se acreditarmos que a natureza é passiva, que guarda em si somente uma verdade possível, então vocês concordam comigo que acreditamos que a natureza tem uma (e apenas uma) essência, que essa essência é eterna (sempre houve e sempre haverá), que não se altera e que, portanto, deve ser buscada e encontrada, de preferência com rapidez.
Acho essa discussão particularmente interessante porque da mesma forma que acreditamos, às vezes sem querer, que a natureza é um objeto a ser explorado e que nela existe uma essência, também existe uma certa noção, nem sempre admitida, de que o jogo de futebol é um objeto a ser explorado por treinadores e treinadoras, por atletas e profissionais do futebol em geral, e que o jogo de futebol também tem a sua essência, tem a sua verdade, tem o seu destino e, portanto, todos aqueles que não encontrarem a essência do jogo a priori, também não chegarão ao destino certo. Trocando em miúdos, são os que não ganham. As duas ideias me parecem bastante perigosas, mas vocês haverão de convir comigo que elas não apenas estão por aí, como também estão por aqui, conosco, uma vez que também somos herdeiros daquele pensamento sobre a natureza.
Vejam, por exemplo, a discussão sobre isso que chamamos jogo de posição (o juego de posición espanhol). Os amigos que já leram o bom Pep Guardiola: a Evolução, irão se lembrar que Juanma Lillo, uma das grandes referências do próprio Guardiola, admite que o termo jogo de posição não é sequer o mais adequado, que o melhor seria jogo de localização, porque as ideias que precedem o jogo de posição estão precisamente ligadas à distribuição espacial dentro do campo. Poderíamos dizer que talvez não seja um ataque por zona (como é a defesa à zona, ocupação dos espaços em função do movimento da bola), mas um ataque por zonas, no plural, uma vez que não é o jogador que vai até à bola, mas a bola que vai aos jogadores em determinados espaços. Mas digo isso porque, especialmente após o sucesso do próprio Pep, parece que tomamos uma certa ideia do jogo de posição (que não necessariamente corresponde ao que ele é) como o único jeito de se jogar futebol, como a ‘verdade inscrita nas estruturas do universo’, e aí tudo o que é bom é bom porque é posicional, e tudo o que é ruim é ruim porque não é posicional ou porque não tem amplitude ou porque não tem profundidade e etc etc. Aliás, sobre as noções de campo grande e pequeno no ataque, fiz algumas observações aqui. E sobre outra dessas verdades que não se questiona mais, que é o que se chama de intensidade, escrevi mais de uma vez, aqui e aqui e aqui.
Pensem agora naquele outro problema, de olhar para o jogo como um objeto a ser dominado. Muito bem, já sabemos que a ação antrópica (ação do homem) sobre a natureza é diretamente responsável pelos diversos problemas climáticos que nos afligem hoje – e a imensa maioria das pesquisas sérias vão neste sentido. Explorar indefinidamente a natureza é, em última análise, explorarmos a nós mesmos (não é isso, aliás, que fazemos todos os dias?). Com o jogo jogado não é diferente: enquanto olharmos para o jogo apenas como um objeto a ser dominado, um animal a ser domado por treinadores, atletas e profissionais do futebol em geral, provavelmente teremos problemas – basta observar o enorme déficit causado pela morte do futebol de rua, menos pela rua e mais pelo jogo, que foi se perdendo também pelas tentativas de controlar a formação dos nossos pequenos e pequenas via exercícios demasiadamente técnicos ou de jogos entupidos de regras mirabolantes. Como aprendi com o Professor Alcides Scaglia, o jogo é autotélico, tem um fim nele mesmo: se treinamos de outras formas que não através de jogos (grandes ou pequenos) será que não estamos, portanto, falando outro idioma que não o do jogo? E outra: se o jogo tem um fim nele mesmo, será que realmente existe apenas uma forma de se jogar futebol? Ou será que o jogo admite os mais diversos sistemas, os diversos modelos de jogo, as diversas técnicas, os diversos biotipos, as diversas potências, os diversos metabolismos, os diversos tempos, os diversos espaços… Se o jogo é diverso por si mesmo, se acolhe a todas as ideias, então sim, devo concordar que o possível é mais rico do que o real.
Por isso, acho que podemos tomar duas decisões práticas: acho que podemos refletir um pouco mais sobre a nossa cultura de se jogar futebol, o quanto o nosso futebol reflete e deveria refletir o nosso povo e, portanto, qual deve ser a medida entre interessar-se e estudar o que é produzido pelos nossos colegas estrangeiros mas, ao mesmo tempo, fazer isso sem sabotarmos a nós mesmos, a nossa cultura, sem nos negarmos. Depois, acho que podemos nos afirmar um pouco mais, como pessoas, no jogo que jogamos. Porque parece que estamos pensando mais ou menos parecido, que estamos falando mais ou menos as mesmas coisas, que estamos usando mais ou menos os mesmos sistemas, que estamos mais ou menos com medo de sermos outros e, a meu ver, isso significa que estamos mais ou menos com medo de ser quem somos.
Não por acaso, às vezes nosso futebol está mais ou menos e às vezes tem um certo medo de ser o que é.
 

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