Sobre a criação de espaços vazios

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Phil Jackson e Scottie Pippen, então no Chicago Bulls: a partir das desordens, uma ordem imparável. (Foto: Sports Illustrated)

 
Cesar Luis Menotti, em frase já conhecida, disse certa vez que o jogo é feito de tempo, espaço e engano (essas frases me agradam, aliás). Engano é um termo levemente poético, mas não é nele que vamos nos dedicar aqui. Tempo e espaço, por sua vez, são conceitos centrais, não apenas para o futebol mas para modalidades coletivas em geral.
O ato de encontrar espaços vazios ao longo do tempo, em função da lógica do jogo, é um desafio para todos nós, treinadores e treinadoras, especialmente aqueles que têm pretensões mais ofensivas. Sonhar com ataques eficazes é simples, mas transformá-los em matéria exige ideias, reflexão, treinamento. Por isso, gostaria de dedicar nosso espaço dessa semana para pensarmos por um instante sobre o encontro dos espaços vazios em campo.

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Em primeiro lugar, pensemos o seguinte: em modalidades coletivas de invasão, o número de jogadores em campo será, evidentemente, sempre inferior à área disponível. Isso quer dizer que os espaços livres são absolutamente inerentes ao espaço de jogo. A questão é: os espaços livres a priorisão espaços ótimos? Bom, não necessariamente. E se não são, é preciso então que atletas e treinadores modelem o jogo, através de ideias e ações, não exatamente para usar os espaços que já existem, mas para criar outros, potencialmente melhores, capazes de atrelar os mecanismos ofensivos ao que nós queremos. Por isso, aliás, me parece importante recorrermos ao conceito de espaço efetivo de jogo, do colega Rodrigo Azevedo Leitão, pois talvez ali estejam os espaços-chave para se chegar ao gol. Quando pensamos em espaços livres, pensamos nos espaços dentro ou próximos ao espaço efetivo, que nos permitam criar situações capazes de facilitar nosso alcance ao alvo adversário.
A questão é que as ideias e as ações, por si, não geram os espaços que nos interessam. O jogo, como sabemos, não funciona a partir de uma relação de causa/efeito. Se visto como um sistema, o jogo está muito mais próximo de uma espécie de caos ordenado, mas uma ordem própria cujos gatilhos são desordens sucessivas, nascidas do próprio jogo, a partir das ações dos jogadores, das interferências externas, da racionalidade própria ao jogo. Repare que ambivalente: nós criamos estratégias para encontrar os espaços vazios. Eles surgem, mas não necessariamente de acordo com a nossa vontade primeira. Mas a adaptação ao caos originado pelo próprio jogo (a que se seguem novas ordens) é o que gera novas os espaços que nos interessam. Parece complexo – e é!
Embora estejamos submetidos à complexidade do jogo, o termo criação, que escolhi para o título, é particularmente necessário. Em primeiro lugar, porque o ato de criar, como superação de si, talvez seja uma das coisas capazes de distinguir o humano de outros seres – e já nos detivemos aqui sobre a necessidade do processo de humanização no futebol. Depois porque, embora soe óbvio, o ato de criar não pode ocorrer de maneira passiva. Para criar, não bastam apenas as ideias e não é possível viver da aleatoriedade: é preciso ação! E, mais ainda, não se trata de uma ação meramente individual. Deste modo, pense comigo duas coisas: I) criar espaços, em uma modalidade coletiva de invasão, deixa de ser um adorno e passa a ser um compromisso moral, a ser constantemente realimentado, pois sem ele tendem a ser menores as chances de se chegar ao gol adversário em uma base regular; II) se o jogo é feito de ordens criadas a partir do caos, se pensamos o jogo como fluxo, então quaisquer tentativas sólidas tendem a fracasso, pois vão na contra-mão daquilo que parece estar no coração do jogo: o movimento. Independentemente do modelo de jogo, parece razoável que a criação de espaços vazios está vinculada ao movimento dos atletas ao longo do tempo – especialmente sem bola. Talvez, quanto mais coordenado for este movimento, melhor.

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Quem já brincou pelas páginas do ótimo Cestas Sagradas, de Phil Jackson, encontrou um registro histórico importante sobre a criação de espaços livres. O triângulo ofensivo, batizado por Tex Winter e aprimorado por Jackson, tornou-se uma estratégia quase que imarcável, segundo ele próprio, porque não apenas era capaz de valorizar o movimento inerente ao jogo (o caos gerador de novas ordens), como o fazia de modo que, invariavelmente, sempre houvesse espaços vazios no ataque. Repare que interessante: a criação de um triângulo, com três jogadores afastados por cinco metros de distância cada, presumia portanto que houvesse uma desordem, uma assimetria na estruturação espacial, fazendo com que, através dela, fosse possível encontrar os espaços ótimos. Os espaços eram criados! Este é um ponto especialmente importante se observarmos que parece haver uma certa tentação, percebo em alguns colegas, não pelo caos (gerador de ordens), mas pela ordem, sozinha. Este é um problema grave. Isso se expressa, neste caso, em uma obsessão bastante particular pela posição, ainda que isso signifique a morte do movimento de que falamos acima. Não surpreende, portanto, que os espaços vazios, vez por outra, sejam tão difíceis de se encontrar.

Finais da NBA, temporada 1991/92, Chicago Bulls (treinado por Phil Jackson) e Portland Trail Blazers. Michael Jordan tem a bola, o triângulo é mais do que visível. Caso não haja condição de chute, o atleta do triângulo na zona morta pode atacar a zona morta oposta, formando outro triângulo, deixando outro espaço vazio – e assim sucessivamente. Na assimetria também se constroi a ordem – Reprodução: YouTube.

 
Repare que isso não significa uma defesa da assimetria como a única forma de criação de espaços ao longo do tempo, mas sim como uma referência importante a ser considerada, ao lado da própria simetria, desde que as duas se alternem, pois essa alternância, veja só, também expressa o movimento de que falamos anteriormente. A criação de espaços livres presume movimento, o movimento ocorre a partir de referências (bola-companheiros-adversários-alvo) e, especialmente, não há evidências que nos façam pensar que a lógica do jogo será tão mais facilmente alcançada quanto mais ‘organizada’ estiver uma equipe (especialmente se essa ‘ordem’ for engessada), ou quanto mais racional for a ocupação de espaços. As estruturas, não se esqueça, são voláteis. Sua meia-vida é curta.
Não admira, portanto, que Phil Jackson, no mesmo livro que citei acima, faça uma observação importante sobre o croata Tony Kukoc:
“Quando Toni Kukoc entrou para os Bulls, tendia a gravitar na direção da bola, sempre que esta não estava em suas mãos. Agora [após adaptar-se ao modelo] ele aprendeu a girar para longe da bola e estar sempre em locais livres – o que o torna um jogador muito difícil de marcar.”

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Claude Bayer, na página 123 do excelente O Ensino dos Desportos Colectivos, nos traz uma referência importante neste sentido:
“Consequência do problema precedente, os espaços surgirão decerto em função das deslocações dos adversários, mas igualmente em função das dos companheiros. Trata-se, pois, para o jogador não-portador da bola, de estruturar os espaços do campo de jogo, quer dizer, procurar a todo o momento os espaços onde vai realizar as suas acções, tendo em conta o que fazem os seus companheiros, situando-se portanto, continuamente em relação a eles, conservando uma possibilidade de trocas com o portador da bola. Esta actividade supõe uma recolha de informações contínua, para ver os espaços alteráveis privilegiados, afim de poder mudar de direcção e escolher um outro local do terreno, caso um companheiro se proponha ocupar o espaço previamente escolhido. O educador deve esforçar-se para tornar significativo este elemento do jogo, que obriga o jogador não-portador da bola a descentrar-se dela momentaneamente, a esquecê-la por instantes, para se informar das zonas onde poderá desenvolver a sua acção (aprender a olhar outra coisa além da bola e ter em conta o que fazem os seus companheiros).”
Ou seja, para além do movimento em si e para além das possíveis assimetrias, é preciso que este movimento esteja comprometido com algo maior. Será que este algo seria o modelo? Não sei, pois não se joga pelo modelo: se joga para ganhar e o modelo é o caminho, o meio que escolhemos em vista do fim. Mas ganhar, em si, não é o ponto: fosse assim e todas as equipes teriam consigo o combustível necessário para supostamente jogarem bem. É preciso algo mais.
Daí a função do educador (do treinador, para quem a pedagogia é central), que não apenas pensa sobre o modelo (ao lado dos atletas), como pensa nos pormenores do modelo, nos potenciais espaços a serem criados – centrais, laterais, próximos do próprio gol, distantes…. Este mesmo educador deve ter didática, pois sem ela as ideias morrem consigo – quando elas precisam, na verdade, viver nos atletas. E o mesmo educador (que é mais do que treinador), deve também fazer o atleta identificar os espaços vazios nele próprio, para superar-se a si mesmo e, assim, perceber-se capaz de algo maior.
O que também é parte do relato de Phil Jackson em Cestas Sagradas, diga-se.

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Na ausência de caminhos universais, é preciso criar caminhos próprios, meios que nos façam encontrar os espaços vazios e, assim, do gol adversário. Por ora, fico com a importância do movimento, da assimetria, da solidariedade e, acima deles, da pedagogia. Uma vez mais, não se tratam de regras estáticas, mas sim de direções.
Que dialogam entre si em um fluxo constante.
 

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