Sobre a noção de superioridades no futebol – Parte II

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Edmundo e Romário, em 2000: superioridade sócio-afetiva? (Foto: Reprodução/torcedores.com)

 
Não faz muito tempo, conversamos aqui sobre a noção de superioridades no futebol. Apenas para lembrarmos, naquele texto nós falamos primeiro da diferença entre superioridades absolutas e relativas, depois tratamos de três divisões, que são algumas das mais conhecidas: a superioridade numérica, a superioridade posicional e a superioridade temporal. E para cada uma delas, deixei algumas observações que julgo importantes.
Muito bem, seguindo o que havíamos combinado, gostaria agora de avançar para outros dois tipos de superioridades: a superioridade qualitativa e a superioridade sócioafetiva.

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Quando falamos de superioridade qualitativa, é claro que falamos, diretamente, disso que chamamos de qualidade. Só que quando falamos de qualidade, geralmente tomamos duas noções como verdade: que a qualidade é individual e que a qualidade é técnica. Não por acaso, a superioridade qualitativa normalmente aparece em situações de 1 v 1, e supostamente se define pela qualidade técnica de um dos dois jogadores envolvidos no lance (repare ainda que geralmente associamos a noção de qualidade ao portador da bola; não por acaso, a qualidade costuma ter um viés ofensivo)
Neste sentido, podemos então traçar uma linha: um pré-requisito para a superioridade qualitativa é precisamente a ausência da superioridade numérica. Pois se eu tenho uma situação de 3 v 1 ofensiva, é muito provável que a minha vantagem, antes de ser qualitativa, seja exatamente numérica. Para que a qualidade de um dado atleta influencie o andamento de uma certa jogada, é preciso que ele esteja ou em igualdade numérica (geralmente em situações de 1 v 1, mas não apenas) ou mesmo em inferioridade numérica, onde talvez a qualidade seja ainda mais decisiva.
Só que, por outro lado, as fronteiras que separam a superioridade qualitativa da superioridade posicional ou da temporal são muito tênues. Vamos tomar como exemplo este lance, que viralizou bastante, deste excelente zagueiro holandês que é Virgil van Dijk, do Liverpool, em jogo contra o Tottenham, na última temporada. Van Dijk está em situação de 1 v 2, inferioridade numérica, as costas descobertas, em transição defensiva com altíssimo risco de finalização do adversário. Para amenizar a situação, ele faz o que nossos colegas portugueses chamam de temporizar, que podemos chamar aqui de princípio da contenção, ou seja, ele retarda o andamento da jogada tanto quanto possível (precisamente para conter danos). Ao mesmo tempo, direciona o portador da bola para uma determinada região. Ali, ele preferiu a finalização de perna esquerda de Mohamed Sissoko (que é destro), ao invés de deixá-lo passar para Heung-Min Son – este muito melhor finalizador. Van Dijk não conseguiu bloquear a finalização, mas foi bem sucedido no arrastamento do lance, que não se converteu em gol. Não seria esse um exemplo de superioridade qualitativa?
Se sim, então concordaremos que a superioridade qualitativa não é necessariamente técnica. Na verdade, antes disso, ela é tática. Essa qualidade de que falamos nasce precisamente da capacidade de cuidar bem dos espaços (portanto, de cuidar bem do tempo), para então, em seguida, tomar uma certa decisão técnica. A superioridade de van Dijk nasce precisamente da sua inferioridade numérica, ela se faz pela tática (antes de se fazer pela técnica) e talvez pudesse se fazer ainda mais numa situação de 2 v 3, com um companheiro lhe ajudando na defesa, pois não sendo apenas técnica, a superioridade qualitativa não precisa aparecer só na individualidade (do portador da bola, por exemplo).
Talvez ela esteja para além disso.

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Isto dito, vamos avançar para uma última noção de superioridade: a superioridade sócioafetiva. Salvo engano meu, este é um termo criado pelos nossos colegas espanhois, mas que parece ter uma certa carência de registros escritos (aceito sugestões, inclusive). Mas, em linhas gerais, parece tratar da importância de cuidar das relações e de estimular um ambiente saudável (do ponto de vista emocional) para que o desempenho de um dado atleta ou equipe seja ainda melhor.
Se me permitem, gostaria de colocar essa questão de dois lados, como se fosse uma moeda. No primeiro lado, acho que todos concordamos que o cultivo de boas relações, de um bom ambiente de trabalho, é de fato fundamental. Quando nos sentimos respeitados, quando há um interesse no nosso trabalho, quando há um certo prazer da nossa parte em conviver com as pessoas com que convivemos e trabalhar com quem trabalhamos, é realmente provável que nos sintamos muito mais plenos, muito mais inteiros no ambiente profissional. Aliás, criar relações interpessoais saudáveis é uma arte, que deve ser cultivada com esmero e todos os dias e que exige, dentre outras coisas, que saibamos sair de nós mesmos, para enxergarmos o outro de novos lugares.
Com isto dito, permitam-me olhar o outro lado da moeda. É realmente correto vincularmos bons relacionamentos aos resultados? Porque se dissermos que sim, então teríamos de ignorar os incontáveis casos de desentendimentos, que vocês e eu sabemos e vivemos muito bem, de gente que não se suportava e mesmo assim trabalhava muito bem – ou que inclusive trabalhava ainda melhor exatamente porque não se relacionava bem com um certo colega de trabalho. Vejam bem, não estou dizendo que devamos cultivar relações ruins, evidente que não, estou dizendo que o fato de ter boas/ótimas relações não significa, em absoluto, que o rendimento será necessariamente melhor, e inclusive creio que essa visão é um tanto idealista, negando as ambivalências que fazem parte de qualquer relação humana (inclusive da relação com nós mesmos).
Neste sentido, pensando especialmente no processo formativo dos nossos jovens atletas, cito rapidamente um argumento bastante interessante do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, naquele excelente livro ‘Sociedade do Cansaço’, que já devo ter citado aqui outras vezes. Diz ele que uma das graves doenças do nosso tempo é precisamente a doença da positividade, do excesso de positividade, da ânsia pela positividade e do vício pela positividade. E como recusamos veementemente a negatividade, então vamos desaprendendo a lidar com o contrário, a lidar com o outro, com o outro lado de nós mesmos, com as relações que às vezes estão bem às vezes não, não sabemos nos posicionar num mundo em que tudo precisa estar positivo e feliz. Daí as nossas dificuldades tão evidentes e daí as minhas dúvidas sobre as potências reais da superioridade sócioafetiva.

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Muito bem, falamos portanto de cinco das possibilidades de superioridade: numérica, posicional, temporal, qualitativa e sócioafetiva. Ao invés de apresentar conceitos, achei melhor espremê-los um pouco, ver o que sai deles, sentir melhor o aroma e o gosto. Espero que tenha sido uma leitura agradável e que nos abra caminhos para outros debates neste sentido.
Continuamos em breve.
 

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