Desde que o uso do árbitro de vídeo foi oficializado, já faz algum tempo, guardo comigo diversas ressalvas sobre o protocolo. Para não ser traído pela pressa, decidi esperar um pouco, bastante até. O fato é que vários dos questionamentos, que surgem aqui e ali, confirmam minhas inquietações iniciais. Este, portanto, será um texto crítico. Até porque elogios ao modelo atual do VAR não faltam.
Só que minhas ressalvas ao protocolo são um pouco diferentes daquelas de alguns colegas. Na verdade, não me recordo de tê-las visto ou ouvido em algum lugar – outro motivo porque escrevo este texto. Divido minhas críticas em três blocos: I) a arbitrariedade dos lances capitais; II) a centralidade do processo na equipe de arbitragem; III) a impossibilidade de progresso humano neste protocolo.
Espero tanto apresentar uma crítica de bom nível quanto demonstrar aos colegas aquilo que, ao menos aos meus olhos, parece claro: este modelo do árbitro de vídeo não deixa o jogo ‘mais justo’.
Vejamos.
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Este protocolo parte de uma premissa muito clara: existem lances dignos de serem revisados e lances indignos de serem revisados. No léxico do VAR, são ‘lances capitais’. Uma falta leve, sobre a linha da grande área (logo, pênalti), pode ser revista. Uma falta leve, dois metros antes da linha, não. No papel, o protocolo não deixa dúvidas: o assistente de vídeo (termo oficial, que usarei daqui em diante) só pode ser chamado em lances de gols, pênaltis, cartões vermelhos e para identificação de jogadores.
Muito bem, a definição a priori dos lances que podem ser revistos já está feita, restando aos árbitros aplicar o protocolo. O que isso significa? Significa, implicitamente, que o árbitro sabe que terá suporte em quatro situações do jogo de futebol (supostamente decisivas, ou mais decisivas do que as outras), mas em todas as outras terá o auxílio dos próprios olhos. Objetivamente, isso causa um enorme problema, uma vez que a categorização dos lances potencialmente revisáveis é não apenas arbitrária (qual o critério para se definir o que são lances capitais?) como é também absoluta, ou seja, ignora o caráter relativo, contingente e simbólico dos lances não-binários (sim/não, dentro/fora) que soam secundários na aparência, mas ganham valor dentro do jogo jogado.
Como um capricho do destino, este gargalo ficou nítido exatamente na Final da Copa do Mundo da FIFA (ainda que os mais ferrenhos defensores, que não podem mais recuar, tenham feito vistas grossas). Antoine Griezmann caiu, próximo à área e ao árbitro Nestor Pitana. Este, por suas limitações humanas, não percebeu que havia sido ludibriado – coisa que o replay mostrou claramente. Nesta falta (que não houve) Mandzukic desviou para o próprio gol, e a França abriu o placar, aos 17 minutos do primeiro tempo. Pelo protocolo, o assistente de vídeo não poderia ser acionado, uma vez que a situação não se enquadra na categoria de lances capitais, que citamos acima. Ou seja, uma falta inexistente, que resulta em um gol decisivo, numa Final de Copa do Mundo, não pode ser corrigida pelo vídeo, ainda que ele (e o mundo inteiro) soubesse que se tratava de um equívoco. Para poupar o protocolo, houve até quem criticasse severamente o árbitro.
A única razão para existência de um assistente de vídeo é enxergar aquilo que o olho humano não consegue ver. Quando o protocolo, por qualquer motivo, leva à omissão, é porque algo está grosseiramente equivocado.
Através de um protocolo arbitrário, que separa a priori quatro situações capitais e se abstém em todas as outras, não é possível imaginar que o jogo de futebol esteja ‘mais justo’.
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O segundo problema deste protocolo me parece mais escandaloso. Basicamente, se trata do seguinte: todo o processo, de revisão ou não-revisão, está inteiramente centralizado na equipe de arbitragem. Ou seja, além de restringir as situações de revisão (como vimos acima), o protocolo lança mão de um artifício tanto particular quanto perigoso: embora a decisão final seja ‘sempre do árbitro de campo’ (falaremos disso abaixo), a decisão do que será ou não revisto está inteiramente nas mãos do assistente de vídeo.
Esta é, claramente, a maior fraqueza deste protocolo, por uma razão muito simples. A eficiência deste VAR, ao contrário do que dizem os entusiastas (com fantasiosos % de acertos e etc), não se mede apenas nos lances em que o vídeo é acionado, mas se mede especialmente nos inúmeros lances em que o vídeo, por imprecisão ou omissão, não é acionado. Basicamente, isso dá ao assistente de vídeo uma espécie de poder moderador, capaz de controlar a narrativa do jogo como bem entender. Ele pode tanto convidar o árbitro a revisar lances absolutamente questionáveis, como também pode se abster em situações idênticas ou até mais graves (como vimos desde a Copa do Mundo, diga-se). Desta forma, dizer que a decisão final é ‘sempre do árbitro de campo’ tornou-se muito mais um slogan, uma maneira perspicaz de amenizar a pesada mão do vídeo na decisão do árbitro, do que algo factual. No caso da Copa do Mundo, onde a transmissão oficial criava um misancene cinematográfico, este VAR levava ao limite a impressão que mais me ocorre até hoje: um protocolo limitado, mas fantasioso. Repare, aliás, como a ausência deste mesmo misancene contribui para as críticas que nascem aqui no Brasil.
Na mesma linha, é impossível não se questionar por que não são liberadas as conversas entre árbitro de campo e vídeo (mesmo que no modelo da Fórmula I, por exemplo), ou quais são as garantias de que o assistente de vídeo não dá indicações aos árbitros para além do protocolo (cartões amarelos e similares). Evidente que não estou questionando a boa-fé da arbitragem, não é disso que se trata. É tão somente uma questão de lisura no processo.
Através de um protocolo que centraliza todo o processo na equipe de arbitragem, especialmente na escolha dos lances que devem ou não ser revisados, sabendo das reais (e recorrentes) possibilidades de omissão, não é possível imaginar que o jogo de futebol está ‘mais justo’.
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Por fim, me assustam não apenas a capilarização irrefletida do discurso pró-VAR (os críticos são imediatamente chamados de ‘terraplanistas’ e outras bobagens), mas como não se discutem as consequências, especialmente humanas, decorrentes do protocolo. Basicamente, me parece que este protocolo, da maneira como está posto, deixa os árbitros substancialmente mais pressionados. Basta perceber como poucas rodadas de uso no Brasil já foram suficientes para as narrativas viralatistas que dizem que ‘árbitros brasileiros não sabem usar o VAR’, ‘o problema está em quem usa, não no sistema’ e adjacentes. Não acho que seja este o ponto.
O objetivo (aparente) deste protocolo é diminuir o % de equívocos da arbitragem, especialmente em lances capitais. Se você preferir, este modelo almeja melhorar a qualidade da arbitragem. Mas, repare bem: melhorar a arbitragem não significa, necessariamente, um comprometimento para melhorar o nível dos árbitros. São coisas diferentes. Passado quase um ano da liberação do VAR no Brasil, não somos capazes de dizer que nossos árbitros melhoraram de nível. Não porque eles não sejam capazes, claro que não. Simplesmente porque não existe nenhum interesse do protocolo neste sentido.
Quando escolhe pela arbitragem, sem passar pelos árbitros, o protocolo decide pela impessoalidade, por um caminho em que árbitros se tornam um meio, uma ferramenta, ainda que mais expostos. Na verdade, me assusta como o discurso da impessoalidade é comprado com tamanha ferocidade (‘o VAR é o futuro!’, ‘não se escapa da tecnologia!’), sem que a mesma energia seja investida no desenvolvimento dos árbitros em geral. Acompanho, com alguma proximidade, vários dos maiores defensores deste modelo, e não me lembro de tê-los visto defender, com a mesma assiduidade, a profissionalização da arbitragem no Brasil – na minha opinião, debate obrigatoriamente anterior ao da implementação do assistente de vídeo. Ou seja, espera-se que os árbitros brasileiros, que sequer vínculo empregatício têm, tenham o mesmo percentual de acerto, a mesma fluidez no protocolo de profissionais de outros países, que simplesmente vivem do apito. Me parece moralmente assustador.
Ao meu ver, além de não demonstrar qualquer interesse na melhora do nível dos árbitros, o protocolo ainda consegue, sutilmente, aumentar a pressão sobre toda a equipe de arbitragem, para quem os equívocos, de qualquer natureza, serão cada vez mais inadmissíveis, em nome da lógica doentia da eficiência a qualquer custo. É por isso, se ainda não ficou claro, que há tantos diálogos entre os árbitros de campo e vídeo aqui no Brasil, porque o direito ao erro, aqui, inexiste ainda mais, e os árbitros, sabedores disso, tentam se proteger como podem. No médio/longo prazo, não me surpreenderia se este modelo levasse os árbitros próximos ao esgotamento mental, exatamente em função da pressão desumana a que são e serão submetidos.
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Ao contrário de alguns colegas, acho frágil o argumento que diz que bastam ‘alguns ajustes’ no protocolo, que ele será ‘aprimorado’ e etc. Não é disso que se trata. Na minha opinião, é preciso um forte deslocamento no protocolo. E isso significa debater seriamente a adoção de um sistema de desafios. Por quê?
Porque a definição de um lance capital não é absoluta e a priori, é relativa e contingente, o que significa que o valor de um lance só pode ser medido em associação ao jogo jogado. E melhor, pode muito bem ser medido por quem joga, não apenas pela equipe de arbitragem. Ao invés de centralizar a abertura de uma revisão nos árbitros, basta deixar com as equipes o direito de pedir revisões quando bem entenderem, talvez na mesma lógica do tênis (imagino duas revisões por equipe, retirando uma para cada chamada equivocada). Este simples deslocamento teria amenizado absolutamente todos os problemas citados por mim acima. Da mesma forma, teria diminuído sensivelmente as recentes reclamações sobre o uso do VAR nos estaduais. Para aqueles que acham que o assistente de vídeo também é um atrativo ao jogo (?), estaria aí um argumento importante, uma vez que a chamada das revisões deveria ser estratégica, por motivos óbvios.
Entendo que o vídeo pode vir a ser de grande auxílio para o futebol e que a ‘tecnologia’ (ainda que não se saiba exatamente o que isso significa) pode contribuir com o jogo de futebol com a vida vivida. No protocolo atual, me parece, a contribuição é mais aparente do que factual, pelos motivos que expus. Além disso, lembre-se o protagonismo é e deve sempre ser humano. Ou encaminhamos, em um futuro próximo, para a substituição de árbitros, treinadores, jogadores e das próprias pessoas, sob a premissa de um suposto ‘progresso’.
Ainda que este ‘progresso’ seja ilusório.