Nos últimos meses, alguns dos meus textos neste espaço foram dedicados à rua, ao desenho daquilo que especialmente os professores João Batista Freire e Alcides Scaglia chamam, há algum tempo, de Pedagogia da Rua.
Algumas experiências recentes me mostram que persiste uma dificuldade de entendimento da rua, do seu significado, ainda que vários de nós sejamos herdeiros dela. Há quem associe, por exemplo, o futebol de rua com ‘malandragem’, no sentido pejorativo. Daí a necessidade de conversarmos mais sobre o assunto.
Nesta coluna, publicada uma semana após uma fala que Alcides e eu fizemos no Pint of Science– evento de divulgação científica realizado simultaneamente em todo o mundo – em que falamos exatamente da rua, gostaria de registrar três das reflexões que fiz por lá: a rua como espaço de metáfora, a rua como espaço de liberdade e a rua como espaço de descoberta.
Vejamos.
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Olhar para a rua como metáfora significa, basicamente, não olhar para a rua com olhos objetivos, positivistas. Significa, na verdade, olhar com olhos curiosos, relacionais, em certa medida poéticos, olhos metafóricos. Como sabemos, metáfora vem do grego metaphora, algo próximo de ‘levar além’. Ou seja, quando falamos da rua, precisamos ter claro que não falamos da rua literal.
Não falamos, portanto, da rua pela sua forma, mas da rua pelo seu conteúdo. Pois pensar na rua ao pé da letra pode trazer alguns equívocos importantes. Um deles é imaginar que a rua contém alguma espécie de substância mágica (um pó, como gosta de dizer o próprio Alcides) que faria dela transformadora e necessária. Se fosse assim, não precisaríamos conversar sobre Pedagogia, bastava encher os centros de treinamentos de asfalto, deixar os garotos e garotas sobre ele e dali brotariam craques e mais craques – e não é disso que se trata. Repare então que é possível falar de futebol de rua sem que se fale do futebol na rua (a foto que ilustra esta coluna é um exemplo). Da mesma forma, pensemos em uma fala de Ronaldinho Gaúcho, citada no ótimo ‘Futebol de rua: um beco com saída’ (Helder Fonseca e Julio Garganta), em que ele diz que além de jogar futebol com os amigos ‘também jogava horas sozinho com o meu cão, o Bombom, que era incansável. Com ele, tentei todas as fintas possíveis, para evitar que ele trincasse a bola, com excepção do ‘túnel’ [caneta], porque o Bombom tinha as patas curtas.’
Se estivéssemos desavisados e levássemos a rua ao pé da letra, então não me surpreenderia se alguém considerasse levar cães para os centros de treinamento, fazê-los marcadores, e talvez os macro e mesociclos ou mesmo as mensuráveis de complexidade fossem balizados, por exemplo, pelas raças dos cãezinhos, deixando os mais dóceis para a iniciação, os mais agressivos para o rendimento e por aí vai. É claro que o exemplo é absurdo, mas repare que alguns absurdos estão cada vez mais naturais – alguns deles sob o veu do suposto progresso.
Portanto, a rua é espaço de metáfora, não do literal.
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Isto dito, vamos pensar na rua como espaço de liberdade. Para isso, vamos pensar em pelo menos três características da rua que estão deslocadas em outros processos formativos. Na rua, em primeiro lugar, não há árbitros. Ou melhor, até há, mas os árbitros e árbitras são as próprias crianças, são os pequenos e pequenas que aprendem, a partir do jogo, a mediar os próprios conflitos. Isso ganha uma dimensão especial quando lembramos que I) na rua não há faixas etárias; II) a rua é pública, é do povo, de modo que todos os temperamentos e personalidades cabem, e é preciso enfrentá-las; III) o principal vetor de negociação não é a retórica, mas a lida com a bola. Neste sentido, parece claro que a rua apresenta uma dimensão para além da futebolística, apresenta uma dimensão moral decisiva na formação humana de quem dela bebe.
Em segundo lugar, na rua não há treinadores – não neste sentido pragmático a que nos acostumamos. Aqui, gostaria de fazer uma provocação, encontrada no mesmo livro Futebol de Rua, a que me referi acima, vinda do sempre ótimo Jorge Valdano. Para ele, ‘a experiência diz-me que introduzir um treinador no processo de ensino de uma criança antes dos quatorze anos é muito útil para os jogadores medíocres e fatal para os jogadores excelentes.’
A crítica de Valdano, é claro, não vai a todos os treinadores, mas vai aos treinadores ansiosos, que querem controlar o jogo a todo custo, que querem controlar os movimentos das crianças, querem controlar a posição (seja lá o que se entende por posição), querem controlar a bola, querem controlar. E na ânsia do controle, as crianças se atrofiam, o espaço se esvai, a bola escapa, o jogo corre. Assim, a rua é um espaço de liberdade tático-técnica e a ausência de treinadores, no caso da rua, pode ser benéfica para a formação de uma autonomia futebolística que em certa medida incomoda, pois o bom jogador de rua, o bom jogador, também carrega um quê de irresponsabilidade.
Por fim, a rua não está repleta de regras, a rua tem muito menos regras do que as dezessete (além do vídeo) do jogo formal. A tese de doutorado recentemente defendida pelo colega João Claudio Machado discute o quão desinteressantes (do ponto de vista metodológico) podem ser os jogos cheios de regras, cheios de detalhes, que tendem a expressar, diretamente ou não, aquele controle de que falamos acima. E aí perdemos a mão em um dos pontos mais básicos quando pensamos na formação de jovens: é preciso deixar as crianças jogarem.
Aqui, portanto, a rua se consolida como um espaço de liberdade.
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Por fim, a rua é um espaço de descoberta. Mas descoberta de quê? Ao meu ver, descoberta de duas coisas: do jogo e de si.
A rua é descoberta do jogo porque – e é menos óbvio do que parece – na rua se joga. Na rua não se dribla cones, não se busca a técnica perfeita pela repetição descontextualizada, não se coloca a técnica acima de tudo, na rua não se faz outra coisa além de jogar – com todos os constrangimentos que isso significa. Jogar é mergulhar no imprevisível, no contingente, no relacional, na surpresa, na finitude, no desconforto, jogar é mergulhar no erro e é exatamente por isso que jogar também é mergulhar rumo ao acerto. E aos poucos, ao tempo de cada um, o jogo vai sendo des-coberto, vão se tirando as coberturas, e des-cobrindo o jogo jogado (e não pedaços dele) as crianças se enchem de um léxico futebolístico invejável, que nos ajudou a formar tamanhos craques durante tanto tempo.
Da mesma forma, a rua é descoberta de si, exatamente porque não existe a técnica perfeita, não existe a decisão correta (no singular), não existe nada no singular, mas existem caminhos, decisões plurais que nos levam ao mesmo lugar, existem formas diversas de enxergar e sentir o jogo que fazem com que, antes de tudo, o jogador precise olhar para dentro, precise encontrar-se a si mesmo, ao invés de se desencontrar. Jogar bem futebol, e faço aqui uma analogia com o Nietzsche, é tornar-se quem se é – o que é tarefa muito mais difícil do que parece.
E sobre isso falamos melhor em breve.