Sobre os jogos não assistidos (e as coisas que não sei)

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Inglaterra de 1966: um exemplo das (várias) equipes que ainda não vi – mas que também me formam. (Foto: Divulgação/Reprodução: diário Mirror)

 
Foi na semana passada, acho que quarta ou quinta-feira, que me apareceu um dos textos mais bonitos a que tive acesso nessa quarentena: este breve ensaio do escritor espanhol Arturo Pérez-Revarte, publicado aqui no Brasil por este excelente caderno virtual que é o Estado da Arte, do Estadão.
Ao longo do texto, o autor vai desenhando um caminho que lembra não apenas dos livros que leu e que lhe formaram ao longo da vida, mas especialmente dos livros que não leu. Sendo que os livros que ele não leu (e que provavelmente não lerá) foram e são tão importantes na sua formação quanto aqueles que já estão lidos. Repare, aliás, no recorte neste ‘livros que não leu’: não se trata apenas dos livros que sabemos que existem mas que não estão conosco. Na verdade, se trata especialmente dos livros que sabemos que existem, que compramos ou pegamos emprestado (ou qualquer outra coisa), que ficam na nossa biblioteca por dias, semanas e anos e que, mesmo assim, acabamos não lendo.
É mais ou menos o que ele diz aqui:
“Quando compreendi que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li.”
O texto inteiro é muito bonito, mas especialmente essa parte é muito significativa. Não pude deixar de pensar neste período em que todos nós, profissionais do futebol em geral, temos assistido alguns ou vários jogos do passado. Seja como passatempo ou como ferramenta de estudo consciente, nos está sendo dada a chance tanto de assistir a jogos que já havíamos visto (agora, com outros olhos) como também de assistir a jogos e equipes que ainda não havíamos visto, talvez não como gostaríamos, mas que, de alguma forma, fizeram e fazem parte da nossa própria formação. E ainda que nos seja possível viver ou reviver esses momentos, é claro que o tempo de vida que nos resta (aliás, é impossível não reconhecer a nossa fragilidade humana, especialmente neste período sombrio) não será suficiente para assistirmos a todos os jogos ou todas as equipes ou todos os atletas que gostaríamos de assistir. A nossa formação é e será pela metade, nunca será por inteiro e – aqui está o ponto em que devemos nos apoiar – isso não é um problema, mas é precisamente a chave de uma vida com sentido. Afinal, do que vive uma vida já completa?
Se não podemos assistir a todos os jogos, nem ler todos os livros, nem escrever todos os textos, nem conhecer todas as pessoas e, portanto, nem fazer tudo o que gostaríamos de fazer, então o nosso processo formativo, profissional e existencial, não precisa se voltar para um ponto de chegada, para um determinado cais, porque ele acontece no caminho, entremeado, acontece pelo meio. Lendo o ‘Variações Sobre o Prazer’, do Rubem Alves, no dia em que escrevo esta coluna, encontro uma citação do Guimarães Rosa, neste livro estupendo que é o Grande Sertão: Veredas, que traduz muito melhor do que eu isso que quero dizer. “O real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia…”
Neste período de tanta incerteza, em que seguimos em frente sem muita convicção, talvez seja importante admitirmos este outro lado, e inclusive procurar a beleza nele, pois nós não nos fazemos e não nos faremos (no futebol ou em qualquer outro lugar) somente pelas coisas que temos conosco – o que temos, afinal, é muito pouco. As coisas que sabemos são muito breves perto da infinitude do saber, a nossa grandeza às vezes é muito mais compridez (o Fernando Pessoa disse algo assim, não?) e talvez o nosso peso seja breve perto do peso do mundo. Mas veja bem: isso não é motivo de lamento! É motivo de profunda admiração. As coisas que eu não sei me fazem tanto quanto as (poucas) coisas que eu sei. Se soubesse mais, talvez eu seria menos.
E admirando o que nos falta, talvez encontremos a nós mesmos.
 

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