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Jose Maria Gimenez, em prantos durante e após o jogo contra a França: apenas um lado ou a expressão de toda uma humanidade? (Divulgação: UOL Esportes)

 
No último fim de semana, tomo conhecimento da belíssima história do garoto Gabriel Poveda, do Guarani. Gabriel foi titular pela primeira vez em um jogo do profissional – o que, aliás, já seria motivo de enorme felicidade. Não bastasse isso, fez seu primeiro gol, abrindo caminho para uma vitória que não vinha há cinco jogos. Logo após o jogo, Gabriel foi flagrado em um dos corredores do Brinco de Ouro, emocionado, agradecendo aos pais por ‘nunca terem duvidado nem desistido’ dele, como relatou a (ótima) repórter Livia Laranjeira.
Alguns colegas interpretaram a história como um exemplo tácito da importância de se olhar o assim chamado lado humano do jogador. Neste texto, farei uma breve crítica ao termo lado humano. Pretendo demonstrar, ainda que brevemente, como se trata de um termo pernicioso – por mais bem-intencionado que seja.

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Não deveria surpreender a existência de um movimento, aparentemente discreto, mas crescente, que entende que a importância do processo de humanização das relações no futebol. Por humanização, poderíamos divagar por definições mil, mas fiquemos, por ora, na seguinte: humanizar significa não tratar o atleta como uma coisa, como um objeto utilizado para um determinado fim. Humanizar o processo significa tratar o atleta como um humano, dotado de história, afetos, desejos e limites. Livre, autônomo. Significa tratá-lo como gente, não como um animal qualquer.
O debate sobre a humanização me parece urgente, e me alegra saber que há clubes e profissionais interessados em encará-lo. Na última semana, em evento desta mesma Universidade do Futebol, soube de algumas medidas práticas adotadas pelo Flamengo, através do seu executivo Eduardo Freeland. Ao mesmo tempo, nesta fase de aparente transição de uma visão animalesca para uma visão humanizada, acho importante alimentar uma espécie de rigor, um cuidado que não faça dos nossos atos bumerangues, mas flechas, capazes de ir até o alvo, e nele ficar. Daí as minhas ressalvas ao suposto lado humano.
Minha primeira impressão é que o uso do termo lado carrega uma leve referência da geometria, de modo que o humano parece comparado à uma forma qualquer. Quadrados, trapézios, triângulos (nas suas diversas variações), não se sabe ao certo, mas estaria ali uma figura, uma representação de lados diversos, sendo apenas um deles o lado humano. O problema, evidentemente, é que pessoas não são formas geométricas. Mas, supondo que fossem, estariam mais próximas de qual delas? Certamente, de nenhuma das que citei acima. Provavelmente estaríamos muito mais próximos dos círculos, pois o círculo carrega uma qualidade bastante peculiar, inexorável: no círculo, as extremidades são todas absolutamente equidistantes do centro. Os círculos não têm lados.
Além disso, o termo lado me soa pernicioso por outra razão. Quando falamos de um lado humano, fica subentendido não apenas que há outros lados, mas que os outros lados são tão ou mais importantes do que este lado humano. Não por acaso, a maior parte das reminiscências sobre o humano acontece exatamente em situações extraordinárias, como a do garoto do Guarani. Na ausência do estímulo – que pode ser uma história tocante -, será que estamos realmente treinados para perceber o humano? Será que somos capazes de considerar a humanidade que reside ali, às vezes calada, adormecida em nome da paranoia resultadista que nos aflige? Talvez não. Talvez precisemos de mais treino, treino do olhar e do espírito, para fazer a transição para um olhar que não se resume a lados, mas que percebe o humano antes e através daquilo que, de fato, são os lados! – o tático, o técnico, o físico, o mental. Assim como não se trata um enfermo pelos seus sintomas, mas pela causa da enfermidade, não se trata um atleta apenas pelas ações táticas, técnicas ou físicas, pois são todas sintomas, sinais de uma humanidade latente. É preciso, assim, olhar cada atleta nas suas causas.
Não por acaso, tenho uma afeição considerável pela Pedagogia do Esporte e pela Filosofia – ambas oferecendo soluções práticas, para um olhar humanizado que se reflita regularmente no campo. Ao invés de nos resignarmos aos lados, sugiro, ao menos por ora, termos como humano, humanidade, ser, humanitude, palavras mais abertas. Todas elas reforçam não apenas uma visão ampla do ser, inteira, como também (repare aqui) entendem que o humano não é feito apenas de luz, mas também é feito de trevas. Será que estamos treinados para olhar na escuridão?
Qualquer ação em campo é humana, reflete um caleidoscópio interno, um mundo de cada jogador. Não há lados, há o ser. Ser que não é, mas que está.
E, para o ser, há caminhos mil.
 

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