Volantes e meias

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O Brasil venceu o Japão no sábado (30), em Goiânia, no último amistoso do futebol masculino antes da estreia nos Jogos Olímpicos de 2016, que serão disputados no Rio de Janeiro. Sobretudo no primeiro tempo, foi uma atuação auspiciosa da equipe comandada por Rogério Micale. Mas foi também uma demonstração do quanto a evolução do paradigma praticado no esporte mais popular do país depende fundamentalmente de uma disseminação sobre mudanças de conceitos. E nesse processo, a comunicação exerce um papel fundamental.

O time montado por Micale no início da partida tinha Thiago Maia, Rafinha Alcântara e Felipe Anderson no meio-campo. “Apenas um volante”, disse o narrador global Galvão Bueno em pelo menos três ocasiões da primeira etapa. “Thiago Maia está acostumado a ser segundo volante no Santos e na seleção atua como primeiro homem de meio-campo”, adicionou o repórter Mauro Naves durante os 45 minutos iniciais.

Micale tem sido intensamente incensado por suas ideias ofensivas, pelo nível de seus treinos e pelo time que havia montado no Mundial sub-20 do ano passado – o Brasil perdeu para a Sérvia e ficou com o vice-campeonato. Uma das premissas que o treinador tem tentado incutir na seleção sub-23 é exatamente o comportamento dos meio-campistas. “Ele costuma dizer que joga com três meias”, avisou Mauro Naves durante a transmissão da Globo no sábado.

Enquanto ficarmos procurando volantes e meias ou tentarmos dispor os jogadores em mesas táticas ou quadros, seguiremos aquém do entendimento necessário sobre o que está acontecendo com a seleção. No sábado, a única voz dissonante na transmissão da Globo foi o comentarista Casagrande, que fez pelo menos duas intervenções para dizer que “é melhor evitar rótulos como ‘volante’ ou ‘meia’ no futebol moderno”.

Ora, seguindo a lógica de que o meio-campo é dividido entre volantes e meias, qual é a posição de Iniesta no Barcelona e na seleção da Espanha? E qual era a função de Xavi, talvez o jogador mais inclassificável do futebol nos últimos anos?

Quando pediu a contratação de Paulo Henrique Ganso, o técnico argentino Jorge Sampaoli, que assumiu o Sevilla, disse que entendia o brasileiro como um armador. Para convencer os dirigentes espanhóis a investirem no meia, comparou o que ele pode entregar à equipe às funções de Pirlo durante grande parte da carreira: alguém que sempre enxerga o jogo de frente, distribui passes laterais e dá sustentação à saída de bola.

A reação imediata da maioria da mídia brasileira foi discordar da visão de Sampaoli. Vários comentaristas disseram que faltaria competitividade a Ganso para atuar como primeiro homem de meio-campo e que o jogador contratado do São Paulo percorreria uma faixa pequena do gramado para alguém com tantas funções defensivas.

Na época em que era técnico de Ganso no São Paulo, Muricy Ramalho cansou de dizer que o jogador precisava entrar mais na área. Cobrava definição de jogadas, passes terminais e gols do camisa 10. Dizia que isso era fundamental para que as pessoas percebessem o quanto ele era relevante.

O futebol moderno tem espaço para o “craque visível”, é claro. Não faltam exemplos de jogadores que são terminais, definem lances e são reconhecidos por isso. Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, que têm dominado as recentes eleições de melhor do mundo, são apenas dois bons exemplos disso.

No entanto, a evolução do futebol brasileiro passa diretamente por uma compreensão sobre os “craques invisíveis”. Enquanto medirmos a qualidade de um jogador apenas pela quantidade de gols, assistências ou desarmes, perderemos chances de ter uma noção completa sobre a importância que esses atletas têm no contexto.

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Um ex-treinador do Corinthians fez certa vez uma comparação sobre Paulinho e Elias, jogadores que se alternaram como titulares no meio-campo alvinegro. Disse que o primeiro, quando orientado a pressionar a bola, ajudava no combate ao lateral direito rival, ajudava no combate aos meio-campistas e conseguia uma dobra para tomar a posse do lateral esquerdo. O segundo esperava, acompanhava a trajetória da bola e interceptava o passe do meio-campista para o lateral esquerdo. Os números podem igualar as ações dos dois, mas são atitudes totalmente dicotômicas para o jogo como um todo. Ainda que ambos cumpram o objetivo, há uma distância significativa em aspectos como preenchimento de espaço, desgaste e pressão sobre o rival.

Ganso nunca vai ser um jogador como nos acostumamos a entender os “volantes”. Nunca vai ser combativo, pressionar todos os rivais que estiverem com a bola ou funcionar como alicerce para um sistema defensivo. Nunca será sequer o homem posicionado à frente dos zagueiros para fechar trajetórias naquele setor. A questão é: essa é a única forma de alguém desempenhar aquela função?

Se quisermos cobrar evolução do futebol brasileiro, precisamos nos livrar de conceitos do passado. Já passou da hora de entendermos que jogadores desempenham papéis que vão além de números, pranchetas ou mesas táticas. O futebol, como o mestre Tostão cansou de escrever, é bem mais complexo do que isso.

Tostão também costuma dizer que uma das maiores carências do futebol brasileiro atual é a de armadores que atuem de uma área até a outra. Atletas que enxerguem a partida de frente, distribuam a bola, façam o time controlar o ritmo e proporcionem situações para os atletas agudos serem efetivamente decisivos. Alguém que faça no Brasil o que Xavi passou anos fazendo na Espanha, o que Schweinsteiger cansou de fazer na Alemanha ou o que Pirlo proporcionou durante anos à seleção italiana.

No Brasil, contudo, não nos acostumamos a formar armadores com essa característica. Desde a base, trabalhamos transição em velocidade até a bola chegar “limpa” aos meias. Volantes tomam a bola e carregam até um setor em que os criativos possam apenas criar. Por isso, em vez de Xavi ou Iniesta, passamos anos forjando atletas como Ramires (nada contra o ex-meio-campista do Chelsea, mas ele é um exemplo de alguém que faz transição em velocidade e funciona menos quando tem demanda de um repertório diferente).

Por isso, o papel da mídia em situações como a que Micale propôs no sábado é um pouco educativo. E educar nesse caso não é posicionar atletas numa mesa tática ou mostrar onde acontecem os lances ensaiados, mas dizer ao público que se acostumou com um futebol estático o quanto esses conceitos precisam mudar.

O futebol brasileiro precisa evoluir em entendimento de jogo se quiser voltar a ser competitivo em âmbito mundial. É preciso saber o que se quer para depois correr atrás disso.

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