É possível formar Pelés? Implicações na tática de jogo

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Apropriando-me de uma conhecida metáfora chamada “metáfora do balde” e dando certa personalizada nela, inicio o texto de hoje com a seguinte questão: seria possível transformar, através de um rico processo de ensino-aprendizagem, um jogador mediano nas categorias de base em um excepcional jogador de futebol?
 
Gardner, famoso pesquisador da Universidade de Harvard (conhecido por sua teoria sobre as inteligências múltiplas), certa vez disse que se um indivíduo nascesse sem grande potencial para desenvolvimento nas áreas do pensamento espacial e do raciocínio lógico, poderia treinar diariamente ao longo de anos (podendo se transformar em um bom jogador) que jamais se tornaria um Pelé. Justificou seu pensamento apontando que pessoas excepcionalmente talentosas já nasceriam com características e capacidades potenciais.
 
Pois bem, a metáfora do balde diz que todos nós seres humanos, quando nascemos, somos como um balde vazio pronto para ser preenchido (mas em vez de água, conhecimentos e saberes). Segundo ela (a metáfora), alguns de nós teríamos baldes maiores do que outros, e portanto mais capacidade de comportar aprendizados.
 
Pensamentos postos à mesa, é evidente que seduzidos pela beleza dos argumentos de Gardner e da “metáfora do balde” tendemos a concordar de pronto em “gênero, número e grau” com seus apontamentos. E aí, quando o foco é futebol, reforçamos a idéia de que as equipes precisam investir na captação de jogadores, detectando potenciais talentos para se conseguir novos grandes “craques” (Patos, Robinhos, Kakás, Ronaldinhos,…, Pelés!?).
 
O processo funciona quase como uma “garimpagem” em que grande parte da energia é voltada para o “encontrar a pepita de ouro”. Mas será que reforçar essa idéia é o melhor caminho? Será que o investimento na captação de atletas, procurando talentos no nosso gigante Brasil, apoiado na “metáfora do balde” ou das inteligências múltiplas de Gardner é a mais coerente de todas as idéias?
 
Bom, começando por Gardner, creio que é de se destacar que ele trata “a inteligência” por “as inteligências”. Apoiando-me nas idéias do renomado professor João Batista Freire e do pesquisador Adonis Marcos Lisboa, aponto o fato de que o cientista de Harvard, mesmo admitindo que “as inteligências” geralmente funcionam em conjunto umas em relação às outras (porém, considerando que os processos psicológicos possam ter relativa independência entre si), as trata como circunscritas.
 
Se considerarmos a inteligência como a capacidade de resolver problemas, tratá-la como circunscrita (e no caso de Gardner, “circunscritas”) é frágil por não considerar a complexidade das situações-problema e as possibilidades de respostas desencadeadas por essa complexidade.
 
E aí reproduzo um escrito do pensador francês Edgar Morin de que “a pretensão de tratar a inteligência como objeto reduzível aos seus constituintes é pouco inteligente… A arte da inteligência é também saber escolher inteligentemente os meios inteligentes para tratar especificamente uma dada situação”.
 
Responder com boas soluções a dadas situações significa considerar que a inteligência é circunstancial, ou seja, ela se manifestará de forma específica de acordo com cada contexto (situação-problema).
 
Daí talvez a “metáfora do balde” precise ser repensada, porque não é possível conceber que o potencial de supostos “talentos” esteja no “tamanho dos seus baldes” (mas sim a que tempo são enchidos e com qual variedade de conteúdos isso acontece).
 
Então, em vez do raciocínio do que é natural ou do que é “aquisição condicionada de comportamento”, precisamos compreender que a inteligência é móvel, versátil, imprevisível e está vinculada às circunstâncias que desafiam sua manifestação.
 
Mas que relação tem isso com as questões táticas do jogo?
 
Pontualmente, poderia dizer que antes de mais nada é preciso observar a relação que se estabelece entre a cultura de captação de jogadores nas categorias de base, a “metáfora do balde” e a teoria das inteligências múltiplas.
 
Ao se acreditar que existem baldes maiores para serem enchidos e que existem talentos em potencial com algumas inteligências específicas “mais adiantadas”, haverá sempre uma busca constante a maior “pepita do garimpo”. Como a ênfase estará na garimpagem e não na “química” que transformaria os metais, sempre haverá (ainda que se lapide a pedra) pouca preocupação com o processo.
 
Em outras palavras, ao se preocupar com o tamanho do balde acaba-se por valorizar a quantidade do seu “volume cheio” em detrimento da qualidade e variedade do seu conteúdo.
 
E aí, em vez de jogadores versáteis, inteligentes, criativos, capazes de pensar sobre o jogo sem a tutela obrigatória do treinador, aptos quando profissionais a realizarem variações táticas que potencializem a performance individual e da equipe, teremos atletas com os “freios de mão puxados pelo sistema”.
 
Aí algumas dificuldades de comissões técnicas, representadas pela figura de treinadores limitados, ficam camufladas. Jogadores não estimulados a serem críticos, a não pensar e a não ler o jogo terão mais dificuldade de se “rebelar” (reclamar e cobrar) contra a incompetência dos seus “gerentes”.
 
Então, se é assim que fica mais fácil para quem comanda, é assim que está certo e deve continuar sendo (que vantagem teriam ao mudarem o processo?).
 
Ao se admitir que a inteligência é circunstancial, cria-se a possibilidade de olhar para os jogadores como homens com potencial para serem talentosos. A diferença é que nessa forma de olhar, investe-se na capacidade de encher o balde com variedade e qualidade de conteúdos (algo que depende bastante de quem o está enchendo) e não da crença de que existem tamanhos diferentes de baldes (algo que dependeria mais dos “potencias” do atleta).
 
O caso aqui não é negar que algumas pessoas sejam capazes de resolver melhor determinadas situações-problema do que outras. A questão é aqui é que não se deve atribuir tal “capacidade” ao talento potencial, mas sim ao tempo, à variedade e à qualidade do conteúdo que preencherá os “espaços do balde”.
 
Jamais teremos outro Pelé, é claro. É fato, ninguém jamais será igual a ninguém (ainda que se faça um clone, devemos considerar a complexidade da vida como algo inigualável!).
 
Freires, Morins, Piagets e Sérgios (do Manuel de Portugal) e outros tantos não mencionados nesse texto… Por acaso eles fazem GOL (perguntariam nossos representantes do senso comum boleirístico indignados com as reflexões desses pensadores)?
 
É aí que está.
 
Eles já fizeram, ganharam a partida, o jogo acabou e tem gente que ainda não percebeu.
 
E sinceramente, com relação ao balde; vamos chegar ao fim da vida e ele ainda não terá chegado a metade do seu volume…
 
EXTRA: Uma história que aconteceu em nosso futebol de base…
 
Em um jogo amistoso,
o treinador das categorias de base (de um time profissional) chama um de seus jogadores próximo à lateral do campo e pede para que ele organize a equipe para jogar em um 4-4-2 em linha (forma de jogar que vinha treinando, mas ainda não realizando em jogos – a partida estava 3 a 0 e aquele era um momento aparentemente propício para tal “exercício”).
 
O diálogo:
 
– “Fulano”, organize a equipe para jogar no 4-4-2 em linha por zona pra mim. (o treinador)
 
– Professor, a gente não pode ficar mais um pouco no 3-5-2 marcando pressão? A marcação ta encaixando. Acho que dá para fazer mais gols. (o jogador)
 
– Beleza. Então mais dez minutos no 3-5-2. Daí eu aviso para mudar, ok? (o treinador)
 
– Ok… (o jogador)
 
No banco de reservas, o massagista faz uma cara de reprovação ao diálogo.
 
O jogo termina e a equipe vence por seis a um.
 
Quando voltam ao clube, cochichos e bochichos.
 
O boato: o treinador não tem comando. “Onde já se viu; deixar o atleta jogar do jeito que quer”?

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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