A velocidade tática no futebol

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Comecemos hoje com o conto do “Macaco que queria ser mais rápido do que o Guepardo”.
 
“Depois de muitos anos sem se ver (havia pelo menos três, desde a última conversa no zoológico), o “Macaco da Floresta” e o “Guepardo das Savanas” marcaram de se encontrar. Já na época do zoológico, os bichos mais chegados viviam desafiando os dois amigos a provar quem era o mais rápido. O guepardo, famoso pelas arrancadas nos descampados do zôo, nunca se incomodou; sempre teve claro para si que era o mais rápido. O macaco, por sua vez, acreditava que nenhum outro animal poderia ser mais rápido do que ele nos emaranhados labirintos de árvores da mini-floresta em que vivia.
 
Meio-dia era o horário do encontro; mas faltando cinco minutos, lá já estavam os dois a conversar. Falaram do passado, das saudades, da boa e velha amizade e (impossível não resgatar o assunto!) sobre o “desafio da velocidade”.
 
Os dois perceberam que se esperassem mais algum tempo, com a idade chegando, já não estariam aptos a desenvolver as grandes velocidades que os faziam famosos no zoológico. Como não sabiam quanto tempo mais levariam para se encontrar novamente resolveram enfim colocar em prova o desafio.
 
O guepardo, sem hesitar, logo propôs uma corrida de 300 metros numa savana próxima dali. O macaco, reflexivo, não gostou muito da idéia e disse que o melhor mesmo era que corressem por um trecho de 500 metros por uma floresta que os humanos chamavam de Amazônia.
 
Como não chegavam a um consenso, sabiamente resolveram fazer duas provas: uma na savana e uma na floresta.
 
Sem avisar os outros bichos (só a águia ficou sabendo), prepararam o desafio. No primeiro dia iriam à savana, e no outro à floresta.
 
Na savana, com mais de 15 segundos de diferença, o guepardo venceu tranqüilo e sorridente. O macaco, por mais que tenha se esforçado, não conseguiu chegar nem perto.
 
Na floresta, não teve jeito. O guepardo acelerava e logo dava de frente com uma árvore. A cada um ou dois segundos precisava desviar de um obstáculo. Resultado: com mais de 15 segundos o macaco chegou na frente.
 
Embaraçados e sem saber quem era o mais rápido, consultaram a velha e sábia águia, que sem pestanejar logo concluiu: vocês dois são os mais rápidos. Cada um no seu ambiente específico; cada um naquilo que faz diariamente no seu habitat.
 
O guepardo, insatisfeito com a conclusão da águia, resolveu consultar uma equipe de bichos fisiologistas acostumados a trabalhar com atletas. Depois de algumas fotocélulas e alguns “tiros” (leia sprints) de 30, 40, 100 e 400 metros a conclusão (os fisiologistas foram taxativos!) chegou nua e crua: o mais rápido era o guepardo.
 
Como o macaco e o guepardo eram amigos e não queriam ficar discutindo o assunto, foram até a casa do macaco na floresta beber uma “seiva”. E foi aí que ocorreu uma tragédia. Depois da queda de um balão a floresta ficou em chamas e o fogo rapidamente começou a se alastrar. Quando o macaco e o guepardo perceberam já era tarde e precisaram sair correndo (estavam a uns 30 segundos da clareira mais próxima).
 
Tinham que correr; rápido, 30 segundos talvez não fossem tempo suficiente. E realmente não foi. O macaco conseguiu escapar (em 10 segundos estava livre do fogo). O guepardo, pressionado pela necessidade de ser rápido e desorientado pelas mudanças de direção que fazia para não bater nas árvores, acabou virando cinzas junto com elas.
 
Ainda que isso tudo seja somente um “conto”, me traz boas reflexões a respeito do jogo de futebol.
 
Em um passado recente, o futebol fora dominado pelo raciocínio de que a “supremacia” física seria (além do fim do futebol arte) a solução imediata para conquistar êxitos nos resultados dos jogos. Jogadores mais fortes, velozes e resistentes levariam vantagem sobre seus pares não tão avantajados, e esse deveria ser o novo norte da preparação do jogo.
 
Sem a intenção de tornar essa discussão mais polêmica do que ela já é, discutirei esse raciocínio na perspectiva da velocidade do jogo; ou melhor, no quanto o jogo veloz pode ser vantajoso.
 
Já diria Verkhoshansky há mais de 20 anos que a velocidade é a variável mais importante no desporto de alto rendimento. Vence aquele que consegue realizar ações eficazes mais rapidamente. Então, no xadrez, vencerá aquele competidor que tiver maior velocidade para tomar decisões acertadas contrapondo o jogo adversário. Nos 100 metros rasos do atletismo, vencerá aquele que cumprir a tarefa de correr em linha reta em um tempo menor do que o dos adversários.
 
E no futebol, que velocidade é essa?
 
No futebol, assim como em outros esportes coletivos, ser mais veloz não significa correr mais rápido. Também não significa apenas pensar mais rápido. Nesse nosso artístico esporte, ser mais veloz significa ler muito bem e rapidamente o jogo (compreendendo sua lógica), tomar decisões rapidamente (em “milissegundos”) e transformar em ação o pensamento que apontou solução à situação-problema.
 
Pois bem. Muito do que se tem hoje como prática do treinamento desportivo é herança das práticas concebidas e desenvolvidas para serem aplicadas no atletismo. Muitos cientistas do desporto, preparadores físicos e treinadores de futebol (dentre tantos outros) passaram (e muitos permanecem até hoje) décadas transferindo para esportes como o futebol, conteúdos e conhecimentos nascidos no atletismo.
 
O problema, porém, é que tal transferência decorreu da preocupação com o treinar desvinculado do jogar. Em outras palavras, fracionaram o jogo nos elementos que o compõe (corridas, trotes, sprints, cabeceios, chutes, saltos, etc. e tal), na tentativa de ao juntá-los ter o jogo de futebol como resultado.
 
Como o argumento inicial de se trabalhar as partes com a finalidade de melhorar o todo fora incisivo, pontual e sedutor, acabou por contaminar diversas áreas viventes no entorno do futebol; ganhou forças e hoje custa a ser desconstruído.
 
Ainda hoje, tornar um jogador de futebol veloz é sinônimo de fazê-lo correr mais rápido. Alguns até já evoluíram dessa etapa, mas acabaram por recair na generalidade de tornar o ato motor mais rápido, seja ele qual for.
 
Pois bem. Pelo menos desde 1960 existem trabalhos científicos apontando que a possibilidade de melhora do tempo de reação em ações motoras que envolvem reações simples (sem tomadas de decisão que exijam qualquer nível de reflexão) pode chegar a 18%. Já àquelas que exigem análise para posterior tomada de decisão, cerca de 40% (dados das pesquisas de Simkin (1960), Hollmann, Hettinger (1980), Tanaka (1999), Shaff (2006)).
 
As pesquisas têm mostrado que o tempo total de uma ação motora (da percepção do estímulo até a ação propriamente dita) sofre acréscimo de meio segundo em exigências de decisão simples e de aproximadamente 1,5 segundos em ações que envolvem exigências complexas.
 
No jogo de futebol, a dinâmica tática coletiva traz intensa e grande complexidade às situações-p
roblema. Então, a tomada de decisão do jogador tem grande influência no tempo total da sua ação. Não que a manifestação física da sua tomada de decisão não seja importante (não é isso!). O fato é que se atingindo medianamente níveis de manifestação da velocidade da “ação física”, ter-se-á aptidão para cumprir outras manifestações da velocidade no jogo.
 
O futebol é tático-técnico-físico, e há de se entender como isso se manifesta no jogo.
 
Aumentar a velocidade do jogo não significa correr mais rápido, porque sob o ponto de vista tático não é necessário correr mais rápido; é necessário chegar primeiro.
Correr nas savanas não tem nada a ver com correr na floresta. Ser mais rápido nas savanas não significa ser mais rápido nas florestas.
 
Correr de um ponto a outro do campo de jogo em maior velocidade não significa ser rápido para jogar futebol.
 

“Penso que tem de haver no fundo de tudo, não uma equação, mas uma idéia extremamente simples. E para mim essa idéia, quando por fim a descobrirmos, será tão convincente, tão inevitável, que diremos uns aos outros: Que maravilha! Como poderia ter sido de outra maneira?” (John Archibald Wheeler)

Para interagir com o colunista: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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