Motricidade Humana: para esclarecer algumas dúvidas…

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Estrugiu grande risota entre os “sábios” que vão repetindo até ao cansaço aquilo que lhe ensinaram  (não passam daí), quando publicamente comecei a discordar, com alguma originalidade (passe a imodéstia), da Educação Física e do Treino Desportivo que me pareciam ser aceites maioritariamente entre os profissionais destas duas áreas. Já lá vão mais de 30 anos! E recordo com emoção o colorau doce das críticas de Nelson Mendes, professor do Instituto Nacional de Educação Física (INEF) de Lisboa, à ginástica tradicional e ainda a publicação do livro de João Paulo S. Medina, A Educação Física Cuida Do Corpo… E Mente, em 1983.

Tenho verdadeiro horror por fórmulas, cânones de escola e tiranias da moda. Demais, quando em 6 de Outubro de 1968, pisei, pela primeira vez, o chão lajeado do INEF, já eu estudara Gaston Bachelard (1884-1962) e sabia portanto que era também descontínua a  História das Ciências, ou melhor: que os momentos mais significativos da história de uma ciência acontecem com as rupturas ou cortes epistemológicos, onde, respeitando-o embora, se considera muito do que é Passado um verdadeiro obstáculo epistemológico. Durante a década de 70, com Louis Althusser, aprenderia  depois que o corte deveria ser epistemológico porque era político, ou político porque era epistemológico. Por isso, quando defendi a minha tese de doutoramento, em 1986, tinha (tenho) declarados objectivos epistemológicos e políticos. Para mim, conhecer é fundamentalmente encontrar novas vias de acesso à transformação social!

 

Em Novembro-Dezembro de 1979, na revista Ludens, do Instituto Superior de Educação Física da Universidade Técnica de Lisboa, escrevi um artigo intitulado “Prolegómenos a uma nova ciência do homem”, sucedâneo de uma descoberta por mim efectuada (como sei bem dos meus limites, admito que outras pessoas o tenham visto antes de mim – só que, por defeito meu, as não conheço) que a Educação Física nasce do dualismo antropológico cartesiano. A educação do físico, dentro da perspectiva mecanicista do tempo e a educação do espírito decorriam de costas voltadas, ou seja, para sermos breves, dominava então o “erro de Descartes”. Não foi por acaso que a expressão Educação Física nasceu, depois deste filósofo que viveu entre 1596 e 1650. Os gregos, pura e simplesmente, ignoravam-na. Jerónimo Mercurialis, na sua De Arte Gymnastica (1569), sustenta que, na Grécia Clássica, eram três os tipos de ginástica: a militar, a médica e a atlética.

A Medicina racionalista destinava-se também àquilo que em nós era físico ou matéria tão-só. Por isso, aos médicos lhes chamavam os físicos. Demeny (1850-1917), na sua obra Les Bases Scientifiques de l’Éducation Physique define assim a Educação Física: “O conjunto de meios destinados a ensinar o homem a executar um trabalho mecânico qualquer, com a maior economia possível, no emprego da força muscular”. O cartesianismo, endomingado pela ciência positiva, atingia o século XX  e, porque se arrogava de voz activa, prepotente, na Educação Física, de igual modo se assenhoreou do Desporto que passou a reger-se pelos principios em que abunda o Discurso do Método. Demais, os tratadistas da especialidade consideravam o Desporto um dos aspectos da Educação Física…

 

E em 1968, quando conheci o INEF mais de perto, até pude gracejar para o Prof. Nelson Mendes: “Aqui, o Descartes continua vivo!”. Tinha (tenho) por Descartes grande respeito e admiração. Ele é um dos marcos da História da Filosofia. Denunciava, sem quaisquer outras exprobações, tão-só o referido dualismo antropológico de que a Educação Física é um dos produtos. Até que, no dealbar da década de 80, da releitura atenta e meticulosa da Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty,  encontro a motricidade como intencionalidade operante, como movimento intencional da pessoa humana. E, a partir daqui, compus a seguinte definição de motricidade: a energia para o movimento intencional da transcendência (ou da superação). Portanto, para mim (e neste ponto não estou só) motricidade é mais do que movimento – é movimento intencional da complexidade humana!

É afinal o movimento típico da prática desportiva. Fundamentado na motricidade humana, criei uma teorização original (porque não é plágio) da Ciência da Motricidade Humana (CMH), que se desdobra nas especialidades de desporto, dança, ergonomia, educação especial e reabilitação, actividade motora adaptada, etc. Fundamentado ainda na CMH, como ciência humana, pus em causa o treino analítico e sugeri a inexistência do preparador físico, no treino, que seria substituído por um metodólogo do treino, dado que o treino, em todas as circunstâncias, teria em mente a complexidade humana e não só o físico. Mais tarde, descobri, com alegria, que o actual treinador do Inter de Milão também assevera que não tem preparador físico, no seu departamento de futebol. Fui professor de filosofia, não de futebol, de José Mourinho, em 1981! Se alguns dos meus antigos alunos aplicam ao futebol o conteúdo das lições que me escutaram, tal se deve ao facto de (como eu acentuava nas aulas) só saber de futebol quem sabe mais do que futebol

 

Por fim, como ciência humana (e não me alongo mais sobre o tema), a CMH quer ser um conhecimento-emancipação, contra a exploração dos poderosos e a tirania do Estado. Sou socialista e democrata. Sei bem onde levam as democracias sem socialismo e os socialismos sem democracia! Neste momento em que o neoliberalismo entrou em crise agónica, estou a ressoar o que também já assumo, sem equívocos, há muitos anos! A CMH é um saber qu
e exige a acção: não propõe apenas um ideal, postula também a procura de meios concretos, para realizá-lo!

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse artigo acima foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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