Scout analfabeto

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Hoje, vou mais uma vez falar um pouco sobre “scout quantitativo”, ou melhor, das ferramentas quantitativas que são utilizadas por equipes, especialistas e mídias envolvidas de alguma forma com o futebol.

Infelizmente, ainda tem se tentado explicar o jogo de futebol por meio de números que representam um diagnóstico “do mundo da lua” e que pouco se relacionam com a realidade da complexidade inerente ao jogo.

Partidas são vencidas e perdidas sem que os sintomas das ferramentas quantitativas apontem o caminho concreto daquilo que os gerou.

Obviamente a culpa não é dos números, e sim, como chamaria John Allen Paulos, de um “analfabetismo em matemática” e de uma – como eu completaria – falta de entendimento do jogo como fenômeno complexo.

Vivemos num país em que o futebol faz parte do dia-a-dia dos cidadãos, onde sua força está impregnada com muitas fincas na cultura do povo. Seu papel na sociedade vem ao longo do tempo tomando formatos diferentes, mas sua presença nunca andou um milímetro para trás. Milhões de brasileiros adotam a postura de “entendidos do assunto” e vestem a cada partida de suas equipes a camisa de treinador (perspicaz, que para tudo têm solução). Os treinadores, os “verdadeiros”, de profissão, têm então junto de si, a sombra dos companheiros de trabalho e daqueles que se colocam como donos da verdade (os milhões de “torcedores-técnicos”), que bem ou mal, fazem parte de uma máquina (que funciona como uma cadeia alimentar) que gera informação, necessidade e consumo.

O mau entendimento do jogo leva muitas vezes então, não só a intervenções equivocadas por parte de quem atua profissionalmente no futebol, mas também em todas as dimensões que de maneira direta ou indireta, próxima ou distante interferem nele.

E é aí que o que deveria ajudar, acaba por vezes atrapalhando mais.

Especialistas, imprensa, equipes e treinadores usualmente acabam por dispor da ferramenta que chamam de “scout”, e através de índices estatísticos tentam entender e relacionar desempenho de jogadores e equipes. Há muito tempo estes índices vêm sendo usados. Não existe um padrão definido para formatação dos dados que esse tipo de ferramenta oferece, e o que se observa é sua representação feita de acordo com as preferências de quem o faz ou utiliza.

Como os números, de maneira mal trabalhada, podem nos induzir a conclusões não verdadeiras, não é incomum que emirjam e predominem muitas vezes as conclusões “não verdadeiras”.

Paulos (1994, p.69), usa um exemplo muito interessante para descrever as ciladas que os números, colocados de maneira errônea, podem nos pregar. Este exemplo está descrito em seu livro “Analfabetismo em matemática”. Vejamos:

“Suponha que um teste para câncer que tem precisão de 98%, isto é, se uma pessoa tiver câncer o teste será positivo 98% das vezes, e, se não tiver, o teste será negativo 98% das vezes. Suponha, além disso, que 0,5% – uma em duzentas pessoas – realmente tem câncer. Agora, suponha que você fez o teste e que seu médico lhe anunciou lugubremente que seu teste deu positivo. A pergunta é: qual deve ser o seu nível de preocupação? A resposta surpreendente é que você deveria ficar cautelosamente otimista. Para descobrir por que, vamos dar uma olhada na probabilidade condicional de você ter câncer, dado que seu teste foi positivo.

Imagine que 10 mil testes para câncer são realizados. Destes, quantos são positivos? Na média, cinqüenta dessas 10 mil pessoas (0,5% de 10.000) terão câncer, e assim, uma vez que 98% delas terão teste positivo, teremos 49 testes positivos. Das 9.950 pessoas que não têm câncer, 2% terão teste positivo, para um total de 199 positivos (0,02×9.950=199). Portanto, do total de 248 testes positivos (199+49=248), a maioria (199) são falsos positivos, e assim a probabilidade condicional de se ter câncer dado que o próprio teste é positivo é somente 49/248, ou cerca de 20% (este percentual relativamente baixo deve ser comparado com a probabilidade condicional de se ter um teste positivo dado que se tem câncer, que por hipótese é 98%)“.

Numa análise inicial, realmente nossa tendência em acreditar nos números sem entendê-los é muito grande, e por muitas vezes eles nos servem de argumento indiscutível para afirmações que fazemos. Muitas vezes nos deixamos levar por eles, em uma súbita necessidade inconsciente de termos uma explicação plausível para dado acontecimento. No esporte em geral, e particularmente no futebol isso acontece bastante.

Se a proposta de uma ferramenta como essa (o scout) é dar informações relevantes sobre o jogo, deveria ela antes de mais nada garantir alta correlação com o comportamento das equipes e jogadores enquanto jogam, de maneira que possa expressar não o volume de ações ou eventos e sim seus significados.

Caso contrário, corremos o risco de mergulhar não mais somente num analfabetismo de números, mas também em um rio de analfabetas verdades, que não são reais, simplesmente porque não existem…

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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