A fisiologia da tática: ganha quem corre mais ou quem joga mais?

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Diversas são as investigações científicas que buscam compreender a fadiga do jogador de futebol durante as partidas.

Em geral, tem se tentado associar uma possível queda de desempenho dos jogadores a fatores que vão desde o estado nutricional dos atletas até a melhor distribuição de cargas de treino ao longo dos dias de trabalho.

Um dos vilãos mais comumente apontados pela literatura especializada é o decréscimo nas reservas de glicogênio nos músculos envolvidos nas ações dos jogadores no jogo. Os principais argumentos para sustentar essa idéia (do vilão glicogênio) agrupam-se em análises que quantificam o glicogênio muscular pré e pós-partidas (e ainda intervalos dos jogos) e em rastreamentos que buscam apontar a diminuição das distâncias percorridas durante os jogos em “sprints” e em volume total.

Segundo Reilly, Drust, Clarke (2008), diversos estudos têm concordado que comparado ao 1º tempo de uma partida, o 2º tempo tem uma distância média percorrida pelos jogadores, menor. Os pesquisadores Mohr, Krustrup, Bangsbo (2003), por exemplo, apontam que em jogos analisados no seu estudo a distância percorrida pelos jogadores no 1º tempo foi em média 160 metros maior do que no 2º tempo.

Em acordo com esses dados podemos observar ainda alguns números dos jogos semi-finais (ida e volta) da Uefa Champions League 08/09:


Exceto no último jogo entre as equipes do Chelsea FC e do FC Barcelona em Londres, todas as demais partidas tiveram uma diminuição na distância total percorrida pelas equipes do 1º para o 2º tempo. Notemos que em média a variação dessa distância esteve em torno de -3.94%, tendo seu maior valor alcançado pela equipe do Manchester United em sua segunda partida contra a equipe do Arsenal FC (-9.04%).

Vale a pena destacar, porém, que estatisticamente as pesquisas científicas que têm investigado as distâncias percorridas pelos jogadores em partidas de futebol no mundo todo não têm encontrado diferenças significantes (sob o ponto de vista estatístico) entre os valores obtidos nos 1º e 2º tempos dos jogos.

Quando observamos a diferença entre as distâncias percorridas em alta intensidade, a variação percentual entre os dois tempos da partida de futebol aumenta. Com base em Barros et al (2007) que observou jogos entre equipes brasileiras, ela chega a -15.73% para corridas entre 19 km/h e 23 km/h, e aproximadamente -10.82% para sprints com velocidade igual ou superior a 23 km/h.

Concomitantemente a esses fatos, estudos têm demonstrado que comparada as condições iniciais, a quantidade de glicogênio muscular de jogadores após partidas de futebol tem uma diminuição significante; cerca de -43.20% na média.

Com diminuição tão acentuada na quantidade total de glicogênio muscular, com o fato de que seu restabelecimento dar-se-á através do consumo de carboidratos e que o preenchimento total dos estoques nos músculos pode levar mais do que 72 horas (algumas pesquisas apontam 48 horas, mas estudos específicos com jogadores de futebol têm demonstrado que esse tempo é maior após o desgaste de um jogo de 90 minutos), deveríamos acreditar realmente que a escassez nesse “combustível” por parte de uma equipe a levaria a drásticas consequências em uma partida de futebol.

Mas vamos aos fatos. A outros fatos.

Em 1982, os jogadores da seleção de futebol do Kuwait, então dirigido por Carlos Alberto Parreira, por ocasião do Ramadã, mergulharam em períodos de jejum total durante a Copa do Mundo da Espanha, sendo mais problemático o realizado entre o 2º jogo (contra a França) e o 3º jogo (contra a Inglaterra) da 1ª fase da competição. Desgastada pela sequência de partidas e já em seu último confronto, os kuwaitianos em jejum enfrentaram a seleção inglesa, em um jogo em que por diversos motivos (inclusive o jejum) as apostas apontavam para um “passeio” (massacre, atropelo, etc.) dos ingleses. O resultado do jogo: Inglaterra 1 vs 0 Kuwait; e nada de passeio.

Como seria possível que o kuwaitianos tivessem jogado – sem desconsideramos suas outras limitações – em “bom nível físico”?

Obviamente, como já disse anteriormente, a fadiga de jogadores em partidas de futebol não está associada a um motivo exclusivo. O que ocorre é uma associação de fatores que juntos contribuem para a queda de performance das equipes em jogos de futebol.

Medir a performance a partir de “distância total percorrida”, “distância percorrida em alta intensidade” ou “número de sprints” durante jogos, e ainda, associá-la a este ou aquele fator, única e simplesmente, é desconsiderar por completo a essência complexa do jogo.

O “correr sem significado” não tem o mesmo desgaste do “correr com significado”; o “correr sem significado”, no âmago das coisas, não é nem de longe parecido com o “correr com significado”.

O “correr sem significado” é movimento sem sentido, enquanto que o “correr com significado” é ação com jogo.

Olhar para dados referentes às distâncias percorridas em jogo numa perspectiva complexa é entender que eles são sintomas de um jogar, e não causa do jogo.

Enquanto acreditarmos que eles são causa, continuaremos acreditando que dados relativos as distâncias percorridas em jogo e números de sprints são reflexos de uma performance ingenuamente chamada de “física”, influenciada diretamente pelos níveis de glicogênio nas fibras musculares.

Quando entendermos que eles são sim sintomas de um jogar, aí… Bom aí pode ser que já tenhamos errado o planejamento e perdido o jogo.

Textos científicos mencionados nessa coluna:

BARROS, R.M.L. et al. Analysis of the distances covered by first division Brazilian soccer players obtained with na automtic tracking method. Journal of Sports Science and Medicine, v.6 p. 233-242, 2007.
MOHR, M. KRUSTRUP, P. BANGSBO, J. Match performance of high-standard soccer players with special reference to the development of fatigue. Journal of Sports Science, v. 21, p. 519-528, 2003.

REILLY, T., DRUST, B., CLARKE, N. Muscle fatigue during football match-play. Sports Medicine, v. 38, p. 357-367, 2008.

Para interagir com o colunista: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

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