Em um dia desses, durante uma conversa informal com um colega jornalista, foi-me apresentada uma questão interessante e que, talvez, fosse tema de uma de suas matérias.
Eu dizia a ele sobre as vantagens e porquês de se trabalhar no futebol, de maneira complexa, integrando as dimensões “física, técnica, tática e psicológica”. Explicava sobre a imprevisibilidade do jogo e como preparar jogadores e equipes para ela.
Depois de muita conversa, ele (meu colega jornalista) lembrou da final da Copa do Mundo de 2006, entre as seleções da Itália e a da França - mais especificamente, da expulsão do grande jogador francês, Zinedine Zidane - e perguntou como seria trabalhar sob o ponto de vista da complexidade, o aspecto psicológico integrado às demais dimensões do jogo.
Grande colega jornalista!
Essa questão permite uma série de reflexões e discussões. Proponho então, sem querer ser psicólogo - o que não sou - que “passeemos” por uma ou duas delas.
O jogo de futebol possui inusitadas circunstâncias. Muitas decisões precisam ser tomadas sobre grande pressão temporal e espacial. Um erro, e tudo pode ir “água abaixo”.
A ação (física, técnica, tática e/ou psicológica) do jogador pode definir inúmeras situações de acertos e/ou erros, de êxitos e/ou fracassos, e mudar toda a história de um jogo.
Tomar uma decisão errada e fazer um passe que gere um contra-ataque adversário é tão grave para quem joga, quanto tomar uma decisão errada, dar uma cabeçada em um adversário e ser expulso.
Porém, como não percebemos a “sutil e complexa similaridade” entre uma situação de decisão e outra (passar errado a bola e dar uma cabeçada), é comum que, pautados pelo paradigma tradicional cartesiano, acreditemos que na primeira (o passe errado) ocorreu uma falha técnica, e na segunda (a cabeçada), um desequilíbrio emocional (como se o pé que passou se separasse da cabeça que pensou - “não temos um corpo, somos um corpo!”).
Para me fazer mais claro, neste momento, e antes de prosseguir, vou recorrer a uma fala do treinador português José Mourinho, em um trecho do livro Um ciclo de vitórias, comentando sua passagem pela equipe do Benfica de Portugal: “(…) havia a questão da agressividade no treino, que era inexistente. Algumas ‘individualidades’ simplesmente não queriam que houvesse o mínimo de agressividade nos treinos. Resultavam daí que treinavam sem caneleiras, logo sem contacto e sem situações competitivas. Os treinos no Benfica eram, no mínimo, caricatos. Diariamente, um grupo de bons rapazes dava uns toques na bola, fazia umas corridas e era tudo“.
Vale aqui, antes de nada, destacar que a “agressividade” mencionada por Mourinho, não se trata de “violência”, mas de competição, desafios, conflitos específicos do jogo, situações-problema, etc. Coisas que estão presentes no jogo formal, e que, portanto, precisam estar presentes também nos treinos.
Se, por exemplo, em uma sessão de treinos composta por jogos com regras específicas que propiciem o desenvolvimento de um jogar desejado, aquele que o comanda (o treinador) para o treino a qualquer disputa mais acirrada, ou sucumbi a reclamações constantes de faltas, estará potencializando o comportamento “reclamão” dos jogadores e uma postura mais passiva, menos “dura” nas disputas de bola - direta e indiretamente “subtraindo” o comportamento competitivo de jogadores e equipe.
Não estou, com isso, defendendo a “deslealdade” entre companheiros de profissão, nem, tão pouco, a omissão de quem comanda os treinos. Estou defendendo, com o exemplo supracitado, que, mantendo-se a lealdade nas disputas, o treino seja tão duro quanto seria o jogo, de maneira que os jogadores se acostumem não só a uma constante e incisiva competição, como também a focarem-se na partida e nos conflitos que decorrem da lógica - e não nas decisões certas ou erradas dos árbitros; afinal, treino tem que ser jogo, e jogo tem que ser treino! Estou defendendo que a postura do treinador seja complexamente pedagógica!
Um treino que se paute, que esteja subordinado ao jogo, promoverá inúmeras e inusitadas circunstâncias próprias da partida, com seus conflitos, disputas e problemas típicos. A maneira de atuar do jogador deve ser o “comportamento de jogo”, de acordo com seu ambiente, e não uma variável da dimensão psicológica, física, técnica ou tática.
Quando um jogador age, expressa em sua ação, sua intencionalidade, seu “eu total”; e o “eu total” não é psicológico, ou físico, ou técnico, ou tático. Seu “eu total” é psicológico e físico e técnico e tático, ao mesmo tempo, o tempo todo.
O “jogador total” joga. Então, precisa ser preparado por meio de uma exposição permanente às circunstâncias de jogo para que, no jogo formal, possa acertar mais do que errar.
E o Zidane?
Bom, agora deve ter aprendido. Certamente não fará mais a mesma coisa em circunstância similar… O problema é que o tempo não anda para trás (ou anda Einstein?), e a Copa do Mundo de 2006 já foi vencida pela Itália.
Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br