O arco e a flecha, o futebol e o treino analítico

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Recentemente no Café dos Notáveis, um visitante empolgado por conhecer lugar tão ilustre, após alguns minutos escutando de canto uma conversa entre dois seguranças do Café (dois “caras” que se vestem invariavelmente com ternos italianos de um botão, de cor marrom metálico, e sapatos bicolores – marrom e branco) – descrevo parte de suas vestimentas para ilustrar os carismáticos, engraçados e ácidos homens que cuidam da segurança do Café desde sua “fundação” – resolveu participar e fazer alguns apontamentos que representavam sua opinião sobre o assunto.

Os seguranças (nesse caso o Duk Dúvida e o Tom Certeza) falavam sobre como eram bons os arqueiros que disputaram o último campeonato de arco e flecha.

Para se ter ideia, na última rodada de flechadas, os três finalistas (que eliminaram juntos mais de 200 participantes) tiveram que atirar mais de 50 flechas cada um, em um alvo marcado a 30 metros, até que chegassem ao vencedor da competição.

Tom, que não tinha dúvidas comentava com Duk, que não tinha certezas, que ao certo aqueles arqueiros deviam atirar mais de 500 vezes em um dia, para ficarem com a “mira” refinada e quase tornarem impossível qualquer erro.

Duk, que tinha muitas dúvidas, achou desta vez que Tom devia estar certo; afinal, para acertar alvo tão minúsculo em considerável distância (segundo o entendimento deles) realmente o número de repetições que um arqueiro devia realizar em um dia de treinamento não poderia ser menor.

Repetir, repetir e repetir e só assim chegar à excelência, assim como disse certa vez Platão; ou Sócrates – talvez, quem sabe Aristófanes – pensou, mas sem certeza, o segurança Duk.

O fato é que o empolgado visitante, do qual não me lembro bem o nome, logo se intrometeu no debate entre Tom e Duk e, cheio de convicção, disse:

– Ora, senhores… É o que eu sempre digo sobre o futebol. Jogador para ficar bom tem que repetir os fundamentos até a exaustão. Tem que passar, chutar e cabecear duzentas vezes por dia se for preciso. Se os arqueiros para ficarem bons atiram quinhentas vezes em um dia de treino, tentando acertar o alvo, o mesmo vale para o nosso futebol!

E emendou:

Não é possível ensinar, trabalhar e aperfeiçoar passes ou qualquer outro fundamento, com jogos adaptados, reduzidos, direcionados, conceituais, específicos, ou seja lá quais forem… Tem que repetir o movimento e ponto!

Duk, que não tinha certeza, depois de ouvir atentamente as palavras do visitante, pensou que talvez ele estivesse certo. Mas tinha muitas dúvidas, principalmente porque um arqueiro treina quinhentas vezes (ou seja lá qual for o número), a fazer exatamente aquilo que fará quando estiver competindo – exatamente o mesmo. É concentrar, mirar e atirar (sempre da mesma distância, com o mesmo equipamento, com as mesmas condições competitivas de luz e vento).

Então, colocou à prova seu breve pensamento e suas rápidas e incertas conclusões.

Tom, que também ouvira tudo com bastante atenção, olhou para o visitante e com toda calma que lhe é característica, disse que repetir gestos é diferente de repetir ações, e que no caso do arqueiro, gesto e ação estavam carregados de um único significado e intenção, que era o de acertar a flecha no alvo.

Disse que conhecia muitos arqueiros, inclusive um dos finalistas da competição, e que jamais havia visto um deles treinar quinhentas repetições de empunhadura do arco, separada das repetições de puxada da corda do arco, separada da própria flecha ou da mira ao alvo.

Concluiu que toda repetição se concentrava em torno do significado do movimento em sua totalidade e intenção, que era o de atirar a flecha, com o arco, no alvo.

E ainda acrescentou:

– Então, se formos transferir seus apontamentos sobre o arco e flecha ao futebol (disse ao visitante), esteja certo de que eles reforçam justamente a necessidade de que no futebol, para ensino e aperfeiçoamento das habilidades básicas do jogo, devemos nos atentar para ele (o jogo) e para as ações e seus significados. Isso quer dizer que ao criarmos jogos que exijam dos jogadores criatividade para resolver problemas específicos, parte fractal desta solução estará também na habilidade técnica básica que se manifesta no jogo como ferramenta para dar solução a eles (aos problemas).

– Isso quer dizer que “repetir” ações de jogo, com toda sua circunstancialidade e imprevisibilidade, pode melhorar, dentre outras coisas, as habilidades técnicas básicas? (perguntou Duk).

– Claro que sim!!! (respondeu Tom).

O visitante, que escutava tudo atentamente em silêncio, olhou para Tom e para Duk, deu um suspiro, fez uma cara de desconfiança e resolveu abandonar o debate. Afinal, pensou ele, realmente Pelé, Zico, Maradona, Romário, Ronaldos, Messi e tantos outros deviam ter aprendido o que sabiam nas peladas de rua ou de terreno baldio, e não repetindo passes dois a dois festejando a monotonia. Mas esses eram craques. Nasceram assim. Não precisavam de treino… E além do mais (continuando com suas introspectivas reflexões), explicar isso para dois seguranças não ia ser fácil…

Deixou pra lá e foi embora.

Tom olhou para Duk e, com ar sereno, disse:

– É, caro amigo Duk, a verdade está em como enxergamos o mundo que está ao nosso redor… Você já leu o “Pequeno Príncipe”?

– Aquele em que as pessoas acham que o desenho da cobra que engoliu um elefante é o desenho de um chapéu? (perguntou Duk).

– Esse mesmo. Para alguns sempre vai ser um chapéu. Para outros uma cobra que engoliu um elefante…

E assim encerraram a conversa para receber um dos Notáveis que estava a chegar…

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso