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Na última página do jornal A Bola, edição de 13 de Julho de 2010, é notícia uma crítica de aberta oposição de Johan Cruyff ao futebol praticado pela Holanda e, afinal, pelas grandes potências europeias do futebol, que não têm estilo e cultura que as distinga umas das outras. As mais conhecidas seleções europeias jogam todas sob os mesmos princípios e os mesmos modelos de jogo. Nelas, impera a mesmidade e escasseia o inesperado e o insólito do futebol verdadeiramente espetacular. Cruyff aponta uma das causas: há demasiados estrangeiros nos campeonatos e, por isso, os melhores jogadores nacionais são forçados a emigrar. Se são convocados para as seleções dos seus países, surgem “mecanizados” por princípios que não refletem a cultura da terra que os viu nascer. É caso para perguntar: há futebol inglês, ou futebol na Inglaterra? Há futebol italiano, ou futebol na Itália? Há futebol holandês, ou futebol na Holanda?

A existência da Fifa significa que o futebol, nos vários países, se edifica sobre leis universais e sobre relações estáveis, duradouras, jerarquizadas. O futebol globalizou-se sob um poder mundializado. E, por isso, há futebol, na Inglaterra, na Holanda, na Itália, na Espanha, em Portugal, etc. E com semelhantes instituições e regras iguais. Só que o poder, qualquer que ele seja, traz consigo, hoje, a incontrolada tirania dos mercados.

A Fifa não globaliza só o futebol, mas também o mercado global que a faz viver, através dos grandes monopólios empresariais e dos poderosos conglomerados multinacionais. As vendas de jogadores, a realização de feéricas competições desportivas, os direitos televisivos, o merchandising, todos proporcionam lucros fabulosos aos donos de um mercado único de capitais, que concentra o dinheiro em meia dúzia de empresários e instituições e dele afasta a esmagadora maioria dos clubes de futebol. A mercantilização do futebol não passa de uma estratégia para excluir dos lucros que o futebol gera um número incontável de clubes que também são a sua razão de ser.

Nos campeonatos dos seus países, não jogam só o Barcelona, ou o Real Madrid; nem o Chelsea, ou o Manchester United; nem a Inter, ou o Milan; nem o Benfica ou o Porto (e não me sirvo de mais exemplos, agora) – muitíssimos outros clubes competem também. Ora, o capitalismo global e os mercados planetários, que a Fifa representa, não se encontram ao serviço das necessidades do futebol, mas dos imperativos do mercado.

Na Fifa, o futebol é a estrutura determinada, e o econômico, a estrutura determinante. Quem, como eu, vê futebol há 70 anos, parece-lhe justo capitular de vã quimera o pensar-se que os futebolistas atuais são admiráveis artistas, face aos seus predecessores de cinquenta anos atrás, tímidos, canhestros e desajeitados. É que, na seleção dos “Magriços”, em Portugal, ou nas “seleções canarinhas” de 58 e 62 (três exemplos, entre outros), não sei se teriam lugar qualquer um dos jogadores brasileiros e portugueses, que representaram os seus países, no Mundial da África do Sul. Incluindo o Kaká e o Cristiano Ronaldo, imobilizados numa inesperada mediania. Mas, as mutações sócioculturais e tecnocientíficas do século XX, mais vastas, profundas e céleres do que em qualquer outro estádio histórico, não chegaram ao futebol e não o transformaram também?

Entre o futebol do Eusébio e do Coluna e o de hoje a diferença é enorme, no profissionalismo dos seus agentes, nas inovações tecnológicas (incluindo as da cibernética, da electrônica, da informática), nas instalações desportivas, nos cuidados médicos, na gestão dos clubes, nos vencimentos dos técnicos e dos jogadores, etc., etc. Mas o futebol perdeu em beleza o que ganhou em eficácia. Hoje, um futebol-espetáculo sem gols perdeu interesse e cada vez mais ele se faz em função dos resultados e do lucro e cada vez menos em função doutros valores. De acordo, aliás, com o sistema capitalista mundializado. Tenho saudades do futebol interpretado pelo Rogério (Benfica), pelo Vasques (Sporting), pelo Hernâni (Porto), pelo Amaro (Belenenses), que eu aplaudia, sem pensar nos números do placar…

Pierre Bourdieu não deixa de surpreender, quando não descobre, no desporto contemporâneo, a passagem paulatina do belo ao útil, conforme as exigências do capitalismo global. É verdade que acentuou “o fato de a carreira desportiva, que se encontra praticamente excluída do campo das trajetórias admissíveis para uma criança de origem burguesa (…) representar uma das únicas vias de ascensão social para as crianças provenientes das classes dominadas” (Questões de Sociologia, Fim de Século, Lisboa, 2003, p. 196). Mas o futebol é o que é, principalmente porque se transformou no fiel servidor do deus-lucro. Ele é efeito de uma normalização, em proveito da homeostase do capitalismo que domina o futebol.

A simbiose capitalismo-futebol, reconheço, trouxe um evidente progresso ao futebol, mas dando à instância econômica um posicionamento e uma funcionalidade de infraestrutura – que é praticamente idêntica em todos os países. Daí, o Brasil jogar como a Holanda, ou a Alemanha como o Uruguai, etc. Afinal, o poder que os comanda é o mesmo e portanto não reconhecer estes elementos invariantes, na promoção e institucionalização do futebol atual, é descambar numa retórica do abstrato, onde se criticam os efeitos, mas não se apontam as causas… nem de leve!

Pensar, hoje, a administração e a gestão do futebol não é procurar a verdade, mas o lucro. Para os administradores dos grandes clubes, os problemas maiores não são os de ordem táctica (como para Johan Cruyff), mas os que se prendem com a crise financeira em que o capitalismo se encontra submerso. Entretanto, mesmo com dívidas astronômicas, o Real Madrid e o Barcelona e o Manchester United ainda são os clubes mais ricos do mundo. A Liga dos Campeões, os direitos televisivos, a bilheteira, o “merchandising” são receitas a ter em conta. E, em tempo de crise, como é de lei no capitalismo, há sempre fortunas colossais que têm a sua raiz, na miséria…dos outros!

Vale a pena ler o magnífico trabalho do jornalista Carlos Rias (A Bola, de 27 de Julho de 2010) para contemplar o panorama financeiro do futebol europeu. Vale a pena ler Karl Marx, para entendê-lo.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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