José Mourinho: um treinador pós-moderno

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Quero timbrar em respeitar a verdade e assim começo por reafirmar que nunca ensinei futebol ao José Mourinho e, mesmo que o pretendesse, não o saberia fazer. Demais, sou em crer que o grande mestre de futebol, que ele conheceu, foi precisamente o seu pai, excelente jogador e treinador. Enfim, o incomparável treinador, que o José Mourinho é, nada me deve, designadamente no que ao futebol diz respeito…

Venho, quer por escrito, quer oralmente, exprimindo as minhas opiniões sob a personalidade e a obra de José Mourinho, com quem já aprendi mais do que a pouca filosofia que lhe ensinei. E julgo que (passe a imodéstia) com foros de seriedade e solidez. É evidente que, no trabalho do actual treinador do Real Madrid, há uma nítida aliança entre ciência e cultura, há inovação e competitividade, há busca incessante da excelência e do mérito. E tudo isto num clima de solidariedade, onde os próprios jogadores se sentem sujeitos e não objectos. Como o refere Ruben de Freitas Cabral, é específico da era pós-moderna, que vivemos, que as pessoas se saibam (e se sintam) sujeitos, “funcionando em rede ou em teia”, onde a ordem não é a da máquina, mas da “coerência dos grandes consensos nascidos de princípios partilhados” (in Brotéria, Abril de 2002, p. 335).

Por outro lado, a racionalidade científico-técnica predominou durante a modernidade, desde o século XVI até à primeira metade do século XX. Era o paradigma das ciências da natureza que, com exclusividade, então se teorizava e praticava. O próprio ser humano se estudava, num estilo maçudo de sebenta, como se os números pudessem retratar fielmente o humano. A “teoria e metodologia do treino”, enquanto disciplina curricular, era positivista, biologista, mecanicista (não é positivista, biologista, mecanicista o treino liderado por alguns treinadores?).

No atinente à “teoria e metodologia do treino”, não escondo que o Dr. David Monge da Silva deu a esta disciplina, durante a sua docência no ISEF de Lisboa, corriam os últimos anos da década de 1970, as características típicas do paradigma pós-moderno e, por isso superando (sem deixar de respeitar) o que Galileu e Descartes ensinavam. “Para estes eruditos, o único conhecimento que valia a pena prosseguir era aquele que podia ser expresso por regras precisas e eternas, independentes do contexto” (Keith Devlin, Adeus a Descartes, Publicações Europa-América, p.317). António Damásio escreve em O Sentimento de Si, no início do capítulo onze: “Talvez a ideia mais surpreendente deste livro seja que, afinal, a consciência começa por ser um sentimento, um tipo especial de sentimento, bem entendido, mas, mesmo assim, um sentimento”. David Monge da Silva já conhecia, naqueles anos, o conceito hegelo-marxista de totalidade e abandonava, de vez, o treino analítico, em favor de um treino que visava, em todos os momentos, a complexidade humana.

O futebol que José Mourinho aprendeu, no ISEF de Lisboa, fundamentava-se numa visão sistémica do treino e da competição. Principiava então a grande revolução que o futebol português atravessaria, com o ingresso dos treinadores, licenciados em Desporto. Tenho a certeza de que, se fosse vivo, José Maria Pedroto se sentiria feliz – ele que, um dia, ao telefone, em conversa comigo, reconhecia: “De facto, falta ciência ao futebol português”. Quero, a propósito, aqui realçar que pude conviver com Mário Wilson, Fernando Vaz, Manuel Oliveira, Francisco Andrade, Carlos Silva, Artur Jorge, Manuel Cajuda, Toni, Jorge Jesus (e outros poderia nomear) e considero que todos eles estão entre os pioneiros de um futebol pós-moderno ou até da Sociedade do Conhecimento…

José Mourinho (hoje, o Doutor José Mourinho, pela UTL) beneficiou de uma licenciatura (a licenciatura em desporto) que, nas décadas de 70 e 80, entrou, em pleno, na universidade, que ele frequentou. Mas a sua pós-modernidade revela-se, sobre o mais, numa episteme (ou cultura) que ele próprio criou e que aprofunda aquilo que lhe ensinaram acerca do futebol. E assim construiu um património prático-teórico inestimável, de real eficácia na sua liderança – um património que o torna inimitável, porque José Mourinho não é o que sabe, mas o que é. Demais, os seus ininterruptos êxitos revelam que o seu saber não é um estado, mas um processo.

O melhor treinador de futebol do mundo paira acima das escolas, não podendo medir-se pela craveira dos outros. Quando os seus métodos se estudarem, um dia, como vem fazendo Luís Lourenço, considerá-lo-ão, inevitavelmente, um agitador e renovador de ideias, talvez a mais poderosa e original mentalidade que o futebol produziu. Está a nascer a Sociedade do Conhecimento da Idade da Informação? Com nervo e argúcia, José Mourinho há muito vive nela e há muito a desejou!

E termino felicitando o Real Madrid que, com José Mourinho, indiscutivelmente o melhor treinador do mundo, como a Fifa o proclamou, em Zurique, no passado dia 11 de Janeiro, vai voltar a um novo ciclo de vitórias, à imagem dos êxitos inolvidáveis da equipa de Di Stéfano, Puskas e Gento. É arriscado o que venho de escrever? Com José Mourinho, o pior de todos os riscos é não arriscar!

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

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