Na última quinta-feira (08/09), terminei a coluna afirmando que a medida de lactato sanguíneo poderia ser inútil caso fosse realizada sem critério. Após essa afirmativa, para minha grata satisfação, recebi muitos e-mails solicitando mais esclarecimentos sobre esse fenômeno e, por esse motivo, na(s) próxima(s) semana(s), abordarei aspectos conceituais e metodológicos da análise do lactato aplicado ao futebol. Antes, porém se faz necessário descrever os aspectos históricos dessa análise o qual é o tema específico dessa semana.
Segundo Owles (1930) o aumento da produção de ácido lático muscular foi identificado desde o início do século XIX. O primeiro a ver esse aumento parece ter sido Berzelius por volta de 1808, quando verificou aumento do lactato em veados abatidos por caçadas. Anos mais tarde, Fletcher e Hopkins (1906) e Hill (1924) demonstraram que até uma intensidade crítica de exercício não havia aumento de lactato, porém, em intensidades maiores, havia interrupção da tarefa por fadiga provocada pelo aumento do lactato.
Os mecanismos que explicam o fenômeno entre produção e remoção do lactato durante exercício têm sido discutidos em diversas publicações (Billat 2003; Bertuzzi et. al. 2009, Brooks 2009), mas, resumidamente, a produção de lactato se dá por duas vias. Uma quando a NADH+ e o H+ não podem ser re-oxidados rapidamente pela membrana mitocondrial e os prótons são lançados para fora da célula por lançadeiras (MCT1 e MCT4) com o objetivo de manter o citosol em estado redox; e a outra quando a taxa glicolítica ultrapassa a capacidade do ácido tricarboxílico a aceitar piruvato levando ao aumento da produção de lactato e piruvato sem causar mudança na relação lactato/piruvato (Wasserman et. al., 1986; Brooks, 2002).
Como o equilíbrio entre a produção e remoção de lactato (turnover) é dependente da intensidade do exercício, e os ajustes do treinamento físico também dependem do controle apurado dessa intensidade, a determinação de zonas metabólicas indicadoras do metabolismo de cada atividade se tornou muito importante para avaliação e prescrição de treinamento.
O surgimento dos chamados limiares metabólicos ocorreu na década de 60 com dois grupos de investigação. O de Wasserman (1964), que analisou respostas respiratórias de indivíduos cardiopatas, e o de Hollmann (1957), que analisou, entre outras coisas, o lactato sanguíneo em indivíduos treinados e destreinados.
Após a determinação desses limiares, suspeitou-se de que eles fossem causa e efeito um do outro, mas atualmente a ideia de que eles fazem parte do mesmo fenômeno, sem, no entanto apresentar necessariamente uma relação de causa e efeito é mais bem aceita.
Além de ventilação e lactato, surgiram outras formas de identificação desses limiares (catecolaminas, eletromiografia, amônia, frequência cardíaca), mas por razões óbvias não entrarão no foco de nossa discussão no momento.
A partir da identificação desses limiares, a aplicação prática dessa metodologia ocorreu principalmente para avaliação e prescrição de atividades de média e longa duração, especialmente, as de característica aeróbia.
Nas últimas duas décadas, o interesse pela aplicação do limiar de lactato em atividades intervaladas foi intensificado e muitos estudos passaram a analisar a resposta da lactacidemia em diferentes quantidades, intensidades e durações de estímulos e de recuperações.
Em estudos que analisam as respostas de lactato com estímulo/recuperação pré-determinados, é possível verificar a cinética de lactato com maior precisão do que se vê em modalidades como o futebol, que é praticado com esforços máximos de curta duração (aproximadamente 6s), mas com variados tipos, intensidades e tempos de recuperação.
Por este motivo, a concentração de lactato que se vê nos diversos jogadores de uma mesma equipe corresponde à ações que foram executadas por cada jogador nos minutos que antecederam a coleta e, assim, o dado obtido é absoluta e definitivamente incapaz de expressar o esforço realizado por toda equipe.
Pelo exposto, antes de analisar o metabolismo das ações específicas do futebol, se torna importante, antes de tudo, definir quando, como, por que e para que utilizar o lactato e para isso deve-se considerar seus aspectos metodológicos.
Para interagir com o autor: cavinato@universidadedofutebol.com.br
Referências bibliográficas
Bertuzzi RCM, Lima Silva AE, Abad CCC, Pires FO. Metabolismo do lactato: uma revisão sobre a bioenergética e a fadiga muscular. Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum 2009;11(2): 226-34.
Billat VL, Sirvent P, Py G, Koralsztein JP, Mercier J. The concept of maximal lactate steady state: a bridge between biochemistry, physiology and sport science. Sports Med. 2003;33(6):407-26.
Brooks GA. Cell-cell and intracellular lactate shuttles. J Physiol. 2009 Dec 1;587(Pt 23):5591-600.
Brooks GA. Lactate shuttles in nature. Biochem Soc Trans. 2002 Apr;30(2):258-64.
Fletcher WM, Hopkins FG. Lactic acid in amphibian muscle. J Physiol 1907;35:247-309.
Hill AV. Muscular activity and carbohydrate metabolism. Science 1924;60:505-14.
Hollmann W. The relationship between pH, lactic acid, potassium in the arterial and venous blood, the ventilation, PoW and pulse frequency during increasing spiroergometric workin endurance trained and untrained persons. 3. Pan-American Congress for Sports Medicine; 1959 Nov 29; Chicago.
Owles WH. Alterations in the lactic acid content of the blood as a result of light exercise, and associated changes in the co(2)-combining power of the blood and in the alveolar co(2) pressure. J Physiol. 1930 Apr 14;69(2):214-37.
Wasserman K, Beaver WL, Whipp BJ. Mechanisms and patterns of blood lactate increase during exercise in man. Med Sci Sports Exerc. 1986 Jun;18(3):344-52.
Wasserman K, McIlroy MB. Detecting the threshold of anaerobic metabolism in cardiac patients during exercise. Am JCardiol 1964; 14: 844-52.