“Para quem tem como única ferramenta o martelo, todos os problemas são pregos.”
Parafraseando Mark Twain, que é o autor da frase acima, proponho nesta semana uma reflexão sobre alguns fatos que envolvem discussões (e problemas) que têm cercado o momento “metodológico” e “filosófico” do nosso (brasileiro) futebol profissional e de base.
De início, vamos aos fatos.
Fato 1: Quando começou a ganhar destaque no cenário mundial do futebol, conquistando títulos internacionais pela equipe do FC Porto, o treinador José Mourinho deu início também a uma eufórica e desenfreada série de reportagens, matérias, vídeos e livros reverenciando sua ação como treinador e os seus métodos inovadores de trabalho.
Estar ao lado dele, conhecê-lo, ser seu amigo ou mesmo ter sido seu professor em alguma etapa de sua formação acadêmica passou a ser, de alguma forma, vantajoso. Qualquer tipo de associação com a sua imagem fez aumentar o capital simbólico de publicações, pessoas e mais especificamente para a nossa discussão, de metodologias de treino.
Fato 2: Quando o Santos FC foi “atropelado” (me desculpem pelo “atropelado”) pelo FC Barcelona na partida final do Mundial de Clubes da Fifa 2011, emergiu no Brasil uma série de debates propondo nas entrelinhas (e sobre as linhas) que o “modelo” Barcelona de jogar e formar jogadores precisava, por que não, ser seguido pelas equipes brasileiras – sugerindo que os clubes no Brasil estavam (ou estão) atrasados em planejamento, conhecimento, modelos de treino, nível de profissionais, e etc.
Assim como aconteceu no caso do treinador português José Mourinho, passou a ser vantajoso para defender certos pontos de vista, utilizar o FC Barcelona como referência para justificar argumentos em uma ou em outra direção.
Pois bem.
Colocados os fatos, é bom esclarecer que não tenho intuito com esse texto de apontar verdades, mentiras, erros ou acertos, nem tampouco fazer julgamentos exatos sobre qualquer coisa.
O que desejo realmente é provocar reflexões.
Então, vamos lá.
Estive, entre 2010 e 2012, em três momentos distintos (simpósio, fórum e competição – não nesta ordem) com profissionais das categorias de base do FC Barcelona debatendo e trocando informações sobre futebol, processo formativo, meios e métodos de treinamento.
Tive acesso às planilhas do clube, assisti a vídeos de treinos e pude filmar alguns. E para os que dizem o contrário, posso afirmar: são realizados sistematicamente nos treinamentos das categorias de base do clube exercícios analíticos (fragmentados, previsíveis e centrados na técnica).
E que relação tem isso com o “fato 2” mencionado acima?
Muitos de nós, na justa ânsia de romper com paradigmas impregnados no nosso “brasileiro futebol” e expandir as fronteiras do conhecimento – em prol da disseminação de uma ideia de Complexidade – acabamos muitas vezes por associarmos nossas ideias àquilo que seria feito nas categorias de formação do time catalão (naquilo que, nos nossos sonhos, justificaria a avassaladora aula de futebol dada por eles na final do Mundial de Clubes).
Essa associação justificou muitas vezes a não utilização de atividades analíticas de treino. Mas, como, se o FC Barcelona se utiliza desse tipo de atividade em seus treinamentos?
Não estou defendendo os exercícios analíticos. O que estou sugerindo é a análise crítica dos fatos, e acima de tudo da Complexidade.
Não podemos aceitar os argumentos a favor de uma ou outra metodologia de treino, contrária a atividades analíticas, utilizando o FC Barcelona como referência dessa não utilização.
Continuemos.
Da mesma maneira que argumentos são associados ao FC Barcelona para dar valor a certas ideias, muitas e muitas vezes, foi e continua sendo vinculada à forma de trabalhar do treinador português José Mourinho a metodologia portuguesa (concebida pelo professor Vitor Frade) de concepção dos treinamentos chamada “Periodização Tática”.
Ainda que tenha grande valor, será mesmo que Mourinho se utiliza da Periodização Tática para planejar e construir seus treinos?
Por muito tempo os portugueses vêm dizendo que sim. E isso tem aumentado cada vez mais o simbolismo da Periodização Tática.
Estive com Rui Faria (adjunto do treinador português) em uma visita ao centro de treinamento do Real Madrid, por ocasião de uma viagem a Espanha, e em uma conversa informal, pude perguntar sobre o seu trabalho com Mourinho e sobre a relação desse trabalho com aquilo que foi “batizado” de Periodização Tática (tema que o próprio Rui debateu em trabalho acadêmico no passado).
Objetivamente, ele apontou para o fato de que não aplicavam a “Periodização Tática” de Vitor Frade, mas sim, uma periodização que também levava em conta a ação tática do jogador dentro do planejamento geral.
Disse que o jogo de José Mourinho é um jogo muito maior do que aquele de dentro do gramado, e que afirmar que eles (Mourinho e sua comissão técnica) trabalhavam e alcançavam sucesso a partir da Periodização Tática seria uma redução demasiada da qualidade e complexidade do trabalho que realizavam.
Não estou criticando a Periodização Tática; especialmente porque ela é um marco na história metodológica do treinamento dentro do futebol – ainda que apresente lacunas em nome da própria Complexidade que defende. O que estou sugerindo mais uma vez é a observação crítica dos fatos.
Não podemos construir a base dos nossos argumentos em falsas verdades (ou no desconhecimento dos fatos reais) – porque assim eles perdem consistência. E não estou aqui dizendo que sou eu o conhecedor dos fatos reais.
Reforço novamente que o que desejo é propor reflexões.
Citando Bruno Pivetti, “sabemos que no futebol existem muitas verdades e mentiras, que há possibilidade de o certo resultar em errado, e de o errado transfigurar-se em correto” (livro “Periodização Tática”, que recomendo).
E será isso obra do acaso, ou resultado da nossa incapacidade de compreender a ordem dentro do Caos?
Por que não avançarmos e tentarmos perceber, de posse de um martelo como única ferramenta, outros problemas, que não sejam somente pregos – dando ao martelo outra utilidade?
Por que não sustentarmos e apoiarmos nossos argumentos na essência das coisas, e que, certos ou errados, não precisemos fazer associações incorretas para aumentar o capital simbólico deles?
Tem um martelo? Então, qual o seu problema?
Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br