Há coisas que só acontecem no Botafogo. Diversos episódios históricos contribuíram para a consolidação dessa frase na cultura popular do futebol brasileiro – não existe clube nacional que seja mais ligado a superstições, por exemplo. Em 2015, porém, já é grande a lista de coisas que só acontecem no Botafogo. Ao menos no segmento de comunicação, o time alvinegro não precisou sequer de um mês para ser um caso raro no país.
Dois exemplos disso estão ligados à reformulação do elenco. Rebaixado à segunda divisão do Campeonato Brasileiro, o Botafogo mudou muitas peças desde o término de 2014. O processo de renovação do grupo de atletas tem sido norteado por uma contundente corta de custos – nenhum dos contratados tem salário superior a R$ 100 mil mensais.
O corte é ainda mais claro do que o que havia acontecido na temporada 2014, quando o Botafogo já havia feito um ajuste na realidade econômica de seu elenco. No início do ano passado, o time alvinegro reduziu de R$ 5 milhões para R$ 3,5 milhões mensais a folha salarial e acabou com arroubos como o negócio com o holandês Clarence Seedorf, que recebia R$ 700 mil por mês quando defendia o clube.
A adequação financeira é um processo, portanto, que tem relação com uma série de fatores. É um reflexo de aspectos como a realidade do mercado, as dívidas acumuladas pelo clube em anos passados e a busca por uma política de austeridade. A lista que podia compor uma justificativa para o novo momento é extensa, mas não foi nada disso que o gerente de futebol do Botafogo, Antonio Lopes, usou ao apresentar os reforços Alisson e Bill.
“Todos sabem que o Botafogo tem um orçamento elaborado pela direção, e o futebol precisa cumprir isso. Temos essa missão e logicamente temos uma faixa salarial para contratar e cumprir. Contratar com um salário de R$ 200 mil é fácil, mas a nossa realidade é outra. Tivemos de garimpar e monitorar jogadores”, explicou o dirigente.
A torcida do Botafogo já tinha vários motivos para estar preocupada. O time tem graves problemas financeiros, vem de um descenso no Campeonato Brasileiro e sofreu diversos abalos recentes de auto-estima. E aí, em meio a um processo de reformulação, um dirigente assume o discurso de “é o que tem para hoje” ao se referir aos reforços. Num momento assim, independentemente dos nomes, o processo de comunicação deveria ser o contrário. Alisson e Bill podiam ser arautos da esperança de um novo momento e da reconstrução do time, mas viraram reflexos de um momento ruim.
A apresentação deles, aliás, teve uma segunda aula de comunicação. Uma repórter interpelou Bill durante a entrevista coletiva e fez uma primeira pergunta sobre a transferência para o Botafogo.
“A gente comentou há pouco que você fez uma ótima campanha com o Ceará no ano passado, fez vários gols e foi artilheiro. Você ajudou o Ceará a ir para a primeira divisão, e mesmo assim aceitou vir para o Botafogo e voltar a disputar a segunda divisão. Queria que você dissesse o que o estimulou a ficar na segunda divisão”.
A resposta de Bill foi sensacional: “Olha, o Ceará não subiu. Ficou na segunda ainda. Infelizmente, por seis pontos a gente não subiu”.
A repórter fez uma segunda tentativa, e isso deixou a história ainda mais insólita. “A gente conversava com seu pai lá embaixo também, e ele disse que era Fluminense, mas que agora o time dele é o Botafogo. Queria saber se é um pouco isso para toda sua família, se jogar no Rio de Janeiro estimulou você. Outro ponto que ele acabou confessando é que um problema que você teve no Ceará foi com mulheres, mas ele já puxou sua orelha para isso não acontecer aqui”.
“Não. Sou casado, e graças a Deus muito bem casado. Isso que você falou é mentira. Você está doida? Esse negócio com mulheres já passou. Hoje eu sou muito bem casado, tenho dois filhos maravilhosos e chego ao Botafogo muito feliz de poder trabalhar aqui. Você me quebrou, hein? E outra coisa: não era meu pai, não. Só se meu pai saiu do caixão. Infelizmente, meu pai faleceu e minha mãe também”, respondeu Bill em tom bem humorado.
A repórter esbarrou em uma das questões mais básicas sobre comunicação. Não há mensagem adequada sem uma preparação bem feita, bem associada ao repertório. Não há conversa que não seja alicerçada em informações.
Na sexta-feira (09), no auge da crise em Paris, a repórter Cecília Malan entrou ao vivo na TV Globo. Questionada pelo apresentador Evaristo Costa sobre notícias de momento, ela respondeu com um sincero “Estou na rua, e aqui não tem internet”.
São duas distorções interessantes. A primeira repórter confiou totalmente em conversas, sem ter sequer checado se a fonte com quem havia conversado era realmente o pai do jogador. A segunda se resignou por dificuldades técnicas – agravadas, é claro, pela instabilidade da cidade e pela dificuldade para buscar informações num cenário tão ameaçador. A jornalista da Globo tinha ouvido o estouro de duas bombas enquanto fazia a entrada ao vivo anterior.
Ainda assim, os dois episódios são exemplos de como a comunicação pode ser truncada pela falta de repertório do emissor da mensagem. Independentemente da finalidade, a preparação é uma etapa preponderante nesse processo.
Também é o repertório que transformou uma terceira notícia do Botafogo em um dos episódios mais marcantes da janela de transferências do futebol brasileiro. Jefferson, principal ídolo do atual elenco e titular da seleção brasileira, renovou contrato e vai disputar a segunda divisão.
O movimento de Jefferson não é inédito – Marcos havia feito o mesmo quando o Palmeiras caiu, por exemplo –, mas o momento fez com que essa decisão tivesse enorme repercussão. Com o ocaso de Rogério Ceni, que está cada vez mais perto da aposentadoria, e a saída de outros bons valores, como Neymar, quais são os ídolos que sobram no futebol brasileiro? Quais jogadores que atuam no país são realmente identificados com seus clubes e servem como exemplos para seus torcedores?
Jefferson é uma raridade. Não apenas por ser ídolo num contexto em que isso é cada vez mais raro, mas também por ter valorizado a história. Ele podia ter priorizado aspectos como dinheiro ou permanência na seleção brasileira, por exemplo.
A questão agora é o que vai ser feito disso. O Botafogo tem obrigação de dar a Jefferson um tratamento adequado. A temporada atual tem de ser a de consolidação do goleiro como grande referência do futebol nacional.
O repertório que faltou à repórter é a maior arma do Bot
afogo no caso de Jefferson. Não é necessário fazer nada além de exaltar o que ele já fez pelo clube, mesmo nos momentos mais conturbados. Jefferson é exceção e deve ser tratado como nenhum outro jogador no cenário nacional. Mas será que “há coisas que só acontecem no Botafogo” também sobre isso?