Sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015: em post feito na rede social Facebook, a torcida organizada Independente chamou Muricy Ramalho de ultrapassado e cobrou a demissão do técnico do São Paulo, time que dois dias antes havia sido superado pelo Corinthians por 2 a 0 na abertura da fase de grupos da Copa Libertadores.
Sábado, 21 de fevereiro de 2015: o São Paulo bateu o Audax por 4 a 0 pelo Campeonato Paulista, no Morumbi. Não foi a redenção definitiva do time após a derrota no clássico, mas algo chamou atenção: em grande parte do segundo tempo, os pouco mais de 9 mil torcedores que foram ao estádio gritaram o nome de Muricy Ramalho.
“Eu estou no São Paulo há muito tempo. Muito. Comecei aqui aos nove anos, e essa aqui é a minha casa. Fico mais aqui do que na minha casa, mesmo. A torcida sabe o quanto eu trabalho, mas algumas pessoas querem fazer com que eles pensem outra coisa. Mas eu conheço tudo nesse clube, e qualquer movimento eu sei que acontece. É difícil fazer a cabeça da torcida, mas eu estou ligado e sei quem são [as pessoas que tentam fazer isso]”, disse Muricy em entrevista coletiva após o jogo.
Muricy não foi enfático, mas tampouco sutil: diante da sequência de fatos, o técnico do São Paulo sugeriu que a manifestação da torcida organizada contra ele tenha sido uma ação orquestrada. Afinal, é possível direcionar o que pensa “o torcedor”?
“O torcedor”, em primeiro lugar, é um conceito extremamente cinza. Times de futebol são instituições extremamente populares, que permeiam diferentes setores da sociedade e têm massas formadas por públicos absolutamente distintos. É impossível tentar igualar o comportamento de um membro de torcida organizada, por exemplo, com o de uma pessoa que ocasionalmente frequenta estádios ou com aquele que prefere apenas ver as partidas pela TV.
Ter isso em mente é fundamental para evitar um erro comum em estratégias de comunicação: é impossível criar um plano uniforme para toda a torcida, e isso independe do time. É fundamental pensar em um conjunto abrangente de ações, que chegue a grupos com objetivos e anseios notadamente diferentes.
A despeito disso, existe um problema no atual modelo de relacionamento entre clubes e torcedores no Brasil. Se as relações não são claras, manifestações de grupos passam a ser sempre condicionadas a ações direcionadas.
Para deixar mais claro: como os times não têm um planejamento definido e extenso sobre comunicação para diferentes perfis de torcida e mantêm relações obscuras com torcidas organizadas, nenhuma manifestação pode ser admitida prontamente como algo legítimo.
O comportamento da torcida do São Paulo serve como exemplo nesse aspecto. Os organizados realmente queriam a demissão de Muricy Ramalho ou trabalharam, como sugeriu o treinador, a partir do direcionamento de alguém no clube?
A questão pode parecer pequena, mas tem efeito em larga escala. Para citar outro exemplo relacionado ao São Paulo, a mesma organizada boicotou o jogador Richarlyson quando ele defendia a equipe tricolor. Antes do início das partidas, o meio-campista era o único que não tinha seu nome gritado. Isso gerou discussão nas arquibancadas, e outros grupos chegaram a homenageá-lo.
Tudo isso é parte de um problema de comunicação na relação entre clubes e torcedores no Brasil. Com os sócios-torcedores ganhando importância, têm sido mais frequentes as ações focadas nesse público e na criação de conteúdo relevante para quem é filiado. Mas o que é feito em larga escala?
Torcidas organizadas são instituições independentes, é verdade, mas usam a marca dos clubes. Um plano adequado de comunicação deve zelar por todas as aparições de uma marca, e bradar independência não é suficiente nesse caso.
O Cruzeiro já iniciou um caminho e anunciou que cobraria de organizadas pelo uso da marca do clube. O Palmeiras deu outro exemplo e cortou benefícios concedidos às torcidas. No entanto, ninguém pensou até hoje em como aproveitar de forma profissional esse grupo grande e apaixonado.
Torcedores organizados são fanáticos. Portanto, como mostra qualquer pesquisa, estão no grupo mais propenso a gastar dinheiro com seus clubes. Essa paixão e essa disposição precisam ser trabalhadas, e não menosprezadas.
Torcedores comuns têm relação mais distante com os clubes e consomem menos. Por isso, também precisam ser afagados sempre – eles são as pessoas que circulam nos corredores de um shopping e que precisam ser cativadas por uma vitrine.
São necessidades bem distintas, é verdade, mas são dois potenciais igualmente mal aproveitados. Os clubes brasileiros não trabalham de forma consistente para extrair o máximo de seus torcedores / consumidores, e a comunicação tem enorme parcela nesse problema.
Em vez de ter um plano claro de ações para os torcedores, é mais conveniente direcioná-los de forma sutil. O público podia ser um ativo dos clubes, mas passa a ser massa de manobra política.
O futebol brasileiro precisa entender que discutir o que acontece nas arquibancadas não pode ser apenas “conter a violência” ou “tratar bem o torcedor”. É preciso aproveitar o potencial que esses grupos têm.