O Desporto tem violência, mas não é violento!

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O desporto, mormente o futebol, é o fenômeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo (perdoem-me repetir tantas vezes esta frase!). Por isso, estudar e praticar o desporto permitem-nos uma convivência íntima com o “fato social total” (Durkheim). Num ponto, no entanto, poderemos todos convir: o desporto manifesta-se como um ritual de “violência simbólica”, ou de “guerra simbólica” e daí o ser uma prática que civiliza, que socializa, que procura limitar e canalizar, pelas regras que o distinguem, a agressividade que há dentro de nós, pois que o Homem é, de fato, o mais feroz de todos os animais, como as guerras o provam exuberantemente.

Por outro lado, todas as religiões têm uma tradição de violência: os budistas, os cristãos, os muçulmanos, os judeus, etc.; a ideologia bélica e tribal dos clubes, as “tropas de choque” que se destacam das claques organizadas – muitas são as formas de conflito que podem despontar do espetáculo desportivo. Muitas são as vezes (e cito agora palavras de José Gomes Ferreira) que o futebol “sangra o desespero do mundo”. Relembro os meus tempos de criança e de rapaz, quando os meus ídolos se chamavam “torres de Belém” e o Amaro e o Quaresma e o Rafael e o Matateu e o Di Pace e o José Pereira, o “pássaro azul”. Eram os meus ídolos, ou seja, as figuras número um das minhas predileções, se bem que o Peyroteo me despertasse um respeito que eu não sabia explicar. Um dia, perguntei ao Feliciano, defesa-cenreal do Belenenses: Como é que travava o Peyroteo? E ele, sem restrições e sem medo: “Quando o travava, era à porrada!”. E acrescentava, com palavras que tinham, para mim, uma inapagável ressonância: “Aquele gajo só à porrada se podia travar”. E eu ficava a pensar que o Peyroteo, temível rematador do Sporting Clube de Portugal, o mais alto e o mais forte dos “cinco violinos”, tinha dotes sobrenaturais. Ele foi um desses homens raros que se fez futebolista só para fazer sofrer a malta do meu tempo, que reinava, em Lisboa, nos reinos da Ajuda e de Belém. Nem ao almirante Gago Coutinho, que via subir vagarosamente a Calçada da Ajuda e que ligara, por via aérea, Portugal ao Brasil, nem ao Gago Coutinho, a pessoa mais importante que eu conheci “in illo tempore”, eu votava tamanho culto. Anos mais tarde, a Beatriz Costa confidenciou-me que foi o “senhor almirante” que a ensinou a ler…

Nietzsche publicou, em 1848, a genealogia da moral, onde se lê que “a história do homem é a história do seu fracasso” – fracasso que provoca inevitavelmente humilhações, ressentimentos, ódio e, como etapa última, a violência. São portanto (se o Nietzsche tem razão) humilhados, ressentidos, predispostos à violência alguns dos “agentes do futebol”. Contudo, observa-se, hoje, no desporto, um esforço constante, no sentido de promover a racionalidade, o senso crítico, a reflexão, a ética mesmo, no meio da lei da concorrência pela concorrência que o envolve e condiciona. E até da manipulação ideológica, quase sempre intolerante! São vários os fatores que fazem da nossa sociedade uma sociedade criminogénica: a exploração do homem pelo homem, o tráfico de droga, a prostituição e a criminalidade organizadas, a violência gratuita, a competição apresentada como a categoria estrutural do ser humano. Enfim, fatores suficientes para que o desporto que dela nasce seja tentado, aqui e além, a ser também “lobo do homem”. Elemento de um sistema que funciona sem outro objetivo do que a performance e o lucro, é o “vazio existencial” (V. Frankl) o que dele pode resultar. Por isso, há necessidade de um novo progresso desportivo, de um novo crescimento desportivo, de uma rutura com muito do que é passado e presente, no Desporto, que leve à emergência de novos possíveis e ao surgimento de um desporto de rosto humano. Para tanto e porque o Desporto não é, unicamente, uma Atividade Física, porque é verdadeiramente Motricidade Humana, ou seja, o Homem em movimento intencional – que se tente reencontrar, na prática desportiva, as dimensões humanas perdidas, designadamente a transcendência, que não é física tão-só, porque se refere ao humano na sua integralidade, incluindo o que nele é poesia e profecia e amor. O postulado da primazia da razão, donde surge o homem unidimensional em que o espírito se reduz à inteligência, dando ao olvido a fé, a poesia, o amor – parece definitivamente sepulto e não só pela filosofia, pelas ciências também.

No entanto, devemos reconhecer que resplende, nas regras e normas que regulam a prática desportiva, um laço intrínseco e inquebrável com a Ética, enquanto “matriz de bons costumes, boas práticas e um referencial de valores humanos, nos domínios do desporto”. O Código de Ética Desportiva, editado pelo Plano Nacional de Ética no Desporto (IPDJ-SEDJ), bem documenta e justifica a necessidade da ética, no desenvolvimento do Desporto: “Falar de ética no desporto é centrarmo-nos em valores que deverão estar presentes na orientação dos praticantes, em todos os agentes desportivos e no movimento associativo, de forma a que o desporto se possa constituir como um verdadeiro fator educacional, de integração e inclusão social, contribuindo para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas e consciencialização de todos os agentes que se relacionam quanto à respetiva responsabilidade, na observência de comportamentos leais e que possam servir de modelo positivo para os mais jovens”. E assinala que “são destinatários do presente Código todos os agentes que, de alguma formas, se relacionem com o desporto, taos como: praticantes, treinadores, árbitros, juízes, profissionais de saúde, dirigentes, jornalistas, educadores, encarregados de educação, entidades desportivas, empresários, espetadores e adeptos. Sendo certo que, na sua essência, os princípios da ética são transversais a todos os agentes do desenvolvimento desportivo” (pp. 9-10). Daqui se infere que o treino e as aulas da chamada educação física não deverão reduzir-se a conhecimento. De fato, a educação e o treino precisam do conhecimento, para poder inovar, mas não precisam menos de ética, para que o saber fique ao alcance de todos os excluídos. Na Sociedade do Conhecimento da Era da Informação, que é a nossa, ser excluído é ser, antes do mais, excluído do conhecimento. As ditaduras não temem o poder do desporto, mas dos desportistas que sabem pensar, quero eu dizer: que sabem descobrir, no analfabeto, o resultado da sociedade injusta. O Código de Ética Desportiva, atrás citado, só poderia publicar-se numa sociedade livre e democrática porque, nele, nem todo o conhecimento é absorvido pelas ciências, ou pelas ordens governamentais. Há, nele, saber e sabedoria e a vontade de uma frontal rejeição da &ldqu
o;colonização do mundo da vida” (Habermas).

A violência é uma constante estrutural ao longo da História? Mas não o é, no desporto. Nem estrutural, nem estruturante. “As práticas de violência, no universo das modalidades esportivas, existem, sim, contudo são mais de caráter pontual do que essencial (…). Em outros termos, pode-se dizer que são ocorrências secundárias – embora dignas de nota e a exigir providências das autoridades competentes – e não acontecimentos principais, ou seja, circunstâncias que definem a natureza, a lógica e o sentido da atividade” (Mauricio Murad, a violência e o futebol- dos estudos clássicos aos dias de hoje, editora FGV, Rio de Janeiro, 2007, pp. 170/171). Rendo homenagem sincera a todos os que, na alta competição, na educação ou no lazer fazem do desporto um modo de sermos-uns-com-os-outros, uma prática verdadeiramente necessária ao homem (e à mulher) do nosso tempo. Por amável convite do Dr. Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, assisti ao Football Talks 2015, onde revi e voltei a abraçar Manuel José (que no futebol egípcio, deixou indestrutível prestígio), João Alves (o das luvas pretas, lembram-se?), o Dr. David Sequerra (o selecionador campeão do primeiro europeu de juniores), o Dr. António Oliveira, João Pinto, João Vieira Pinto, Manuel Jesualdo Ferreira, José Augusto e António Simões (dois antigos jogadores da melhor equipa que eu conheci, no futebol benfiquista e no futebol português), enfim uma sucessão fulgurante de figuras inesquecíveis do nosso futebol. E todos, fosse qual fosse a sua cor clubista, pareciam irmanados por um mesmo sentimento de amiga compreensão e tolerância. Todos. Sem exceção. Numa preciosa lição que os desportistas autênticos sabem dar… 

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