A cena mais marcante do Campeonato Brasileiro de 2016 não é de um gol, um drible ou de uma grande jogada. Aliás, sequer aconteceu dentro das quatro linhas. No último domingo (05), depois de torcedores terem entrado em conflito no estádio Mané Garrincha e de a Polícia Militar ter respondido com violência desproporcional e gás de pimenta, um homem com a camisa do time paulista chorou ao descer a arquibancada carregando no colo o filho cadeirante. Foi um trecho trágico de um episódio que apresentou alguns dos principais problemas do futebol nacional. E essa lista de problemas, ao contrário da maior parte do debate sobre o caso, não é apenas sobre violência.
Sobre violência: passou da hora de o futebol brasileiro discutir a composição de torcidas organizadas e o uso indevido que elas fazem de elementos como a imagem dos clubes ou o espaço público de entretenimento. São grupos heterogêneos, e pesquisas indicam que as ações violentas são causadas por uma minoria, mas não podemos seguir convivendo apenas com essa visão e admitindo que um pequeno grupo siga oprimindo todo um mercado consumidor de esporte.
Precisamos de ações mais incisivas, com inteligência e foco, para identificar e punir os culpados por ações criminosas dentro e fora de estádios de futebol. Precisamos parar de entender como natural uma relação promíscua como a que existe entre torcidas organizadas e a maior parte das equipes nacionais. Precisamos parar de admitir problemas tão graves como coisas naturais.
A entrevista extremamente lúcida do goleiro Fernando Prass ao canal fechado “Sportv” depois de o Palmeiras ter vencido o Flamengo por 2 a 1 passou um pouco sobre essas questões. O jogador da equipe paulista falou sobre como o comportamento criminoso de alguns que se dizem torcedores é reflexo de uma sociedade violenta e de como esses assuntos são tratados em âmbito nacional (e não apenas no esporte).
Prass, contudo, não falou sobre um aspecto extremamente relevante do problema. Mais uma vez, uma ação desastrosa da Polícia Militar transformou um problema grande em algo ainda maior. A reação dos oficiais ao que aconteceu no Mané Garrincha foi de guerra e não de segurança, e essa é a distinção básica em todos os episódios de violência em estádios pelo país.
Aliás, não apenas em episódios de violência. O tratamento destinado pela Polícia Militar ao torcedor de futebol é de combate e não de segurança. Desde a área externa, quando as pessoas são recebidas por oficiais da cavalaria, até a revista e a entrada, os procedimentos são virulentos, pouco educados e nada gentis.
As experiências com segurança privada não são infalíveis, bem entendido. Foi por causa de uma empresa que um grupo de chilenos conseguiu invadir o Maracanã durante a Copa do Mundo de 2014, que foi realizada no Brasil. No entanto, a questão aqui não é de margem de erro, e sim de procedimento. A violência da Polícia Militar não é condizente com um ambiente saudável e apenas amplia o estresse do consumidor. Isso não naturaliza a violência, mas é um elemento que não pode ser desconsiderado.
Outro elemento que não pode ser desconsiderado é exatamente esse: a experiência do torcedor. Quais são as lembranças que uma pessoa retira de uma ida ao estádio, desde o momento em que ela ficou sabendo do evento até a volta para casa?
A experiência começa com uma promoção adequada (em discurso, escolha de meios e planejamento de agenda), passa por um sistema de comercialização que seja eficiente (preço, ponto de venda e entrega dos bilhetes), inclui transporte até o estádio, alimentação, vivência no local e o jogo. Sim, o jogo.
Tenho um primo de oito anos que descobriu recentemente o estádio de futebol. O relato dele sobre a primeira partida vista in loco tem duas vertentes claras: um roteiro do que aconteceu em campo e um estranhamento sobre a quantidade de palavrões ditos na arquibancada.
Agora tente comparar isso com as grandes experiências de entretenimento. Tente comparar com um parque de diversões. Você pode até ficar espantado com as atrações (ou com o jogo), mas isso nunca vai encerrar seu relato. Sempre vai existir um detalhe sobre o ambiente, a estrutura ou o que acontece entre um brinquedo e outro.
O episódio de domingo é um exemplo da falência do futebol brasileiro porque mostra o quanto nós negligenciamos o debate sobre a experiência do torcedor. Ignoramos aspectos que vão desde a segurança a conforto, rota de saída em casos de conflito e coisas menos graves e igualmente relevantes, como as atrações além do que acontece em campo.
Na última segunda-feira (06), depois do episódio, a diretoria do Palmeiras avisou que vai convidar pai e filho para ver um jogo do clube no Allianz Parque, em São Paulo, para que ambos tenham uma experiência diferente com a equipe.
A pergunta é: retire da conta a violência. Retire da conta o que aconteceu de problema entre torcedores e polícia. Ainda assim, o modelo proposto por estádios brasileiros é o melhor tipo de entretenimento? Existe aí uma experiência que seja realmente incrível?
Enquanto não pensarmos nisso, vamos seguir achando que a violência é o quadro todo. Na verdade, esse assunto é apenas um trecho do contexto.ra